Fragmento “Fundação e manifesto do futurismo”, 1908, publicado em 1909
“Então, com o vulto coberto pela boa lama das fábricas – empaste de escórias metálicas, de suores inúteis, de fuliges celestes -, contundidos e enfaixados os braços, mas impávidos, ditamos nossas primeiras vontades a todos os homens vivos da terra:
- Queremos cantar o amor do perigo, o hábito da energia e da temeridade.A coragem, a audácia e a rebelião serão elementos essenciais da nossa poesia.
- Até hoje a literatura tem exaltado a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. Queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, a velocidade, o salto mortal, a bofetada e o murro.
- Afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um carro de corrida adornado de grossos tubos semelhantes a serpentes de hálito explosivo… um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia.
- Queremos celebrar o homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada a toda velocidade no circuito de sua própria órbita.
- O poeta deve prodigalizar-se com ardor, fausto e munificência, a fim de aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais.
- Já não há beleza senão na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças ignotas para obrigá-las a prostrar-se ante o homem.
- Estamos no promontório extremo dos séculos!… Por que haveremos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Vivemos já o absoluto, pois criamos a eterna velocidade onipresente.
- Queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo -, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas idéias pelas quais se morre e o desprezo da mulher.
- Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todo tie combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária.
- Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação; cantaremos a maré multicor e polifônica das revoluções nas capitais modernas; cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas elétricas: as estações insaciáveis, devoradoras de serpentes fumegantes: as fábricas suspensas das nuvens pelos contorcidos fios de suas fumaças; as pontes semelhantes a ginastas gigantes que transpõem as fumaças, cintilantes ao sol com um fulgor de facas; os navios a vapor aventurosos que farejam o horizonte, as locomotivas de amplo peito que se empertigam sobre os trilhos como enormes cavalos de aço refreados por tubos e o vôo deslizante dos aeroplanos, cujas hélices se agitam ao vento como bandeiras e parecem aplaudir como uma multidão entusiasta.
É da Itália que lançamos ao mundo este manifesto de violência arrebatadora e incendiária com o qual fundamos o nosso Futurismo, porque queremos libertar este país de sua fétida gangrena de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários.
Há muito tempo a Itália vem sendo um mercado de belchiores. Queremos libertá-la dos incontáveis museus que a cobrem de cemitérios inumeráveis.
Museus: cemitérios!… Idênticos, realmente, pela sinistra promiscuidade de tantos corpos que não se conhecem. Museus: dormitórios públicos onde se repousa sempre ao lado de seres odiados ou desconhecidos! Museus: absurdos dos matadouros dos pintores e escultores que se trucidam ferozmente a golpes de cores e linhas ao longo de suas paredes!
Que os visitemos em peregrinação uma vez por ano, como se visita o cemitério no dos dos mortos, tudo bem. Que uma vez por ano se desponta uma coroa de flores diante da Gioconda, vá lá. Mas não admitimos passear diariamente pelos museus nossas tristezas, nossa frágil coragem, nossa mórbida inquietude. Por que devemos nos envenenar? Por que devemos apodrecer?
E que se pode ver num velho quadro senão a fatigante contorção do artista que se empenhou em infringir as insuperáveis barreiras erguidas contra o desejo de exprimir inteiramente o seu sonho?… Admirar um quadro antigo equivalente a verter a nossa sensibilidade numa urna funerária, em vez de projetá-la para longe, em violentos arremessos de criação e de ação.
Quereis, pois, desperdiçar todas as vossas melhores forças nessa eterna e inútil admiração do passado, da qual saís fatalmente exaustos, diminuídos e espezinhados?
Em verdade eu vos digo que a frequentação cotidiana dos museus, das bibliotecas e das academias (cemitérios de esforços vãos, calvários de sonhos crucificados, registros de lances truncados!…) é, para os artistas, tão ruinosa quanto a tutela prolongada dos pais para certos jovens embriagados por seu os prisioneiros, vá lá: o admirável passado é talvez um bálsamo para tantos os seus males, já que para eles o futuro está barrado… Mas nós não queremos saber dele, do passado, nós, jovens e fortes futuristas!
Bem-vindos, pois, os alegres incendiários com seus dedos carbonizados! Ei-los!… Aqui!… Ponham fogo nas estantes das bibliotecas!… Desviem o curso dos canais para inundar os museus!… Oh, a alegria de ver flutuar à deriva, rasgadas e descoradas sobre as águas, as velhas telas gloriosas!… Empunhem as picaretas, os machados, os martelos e destruam sem piedade as cidades veneradas!
Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: resta-nos assim, pelo menos um decênio mais jovens e válidos que nós jogarão no cesto de papéis, como manuscritos inúteis. – Pois é isso que queremos!
Nossos sucessores virão de longe contra nós, de toda parte, dançando à cadência alada dos seus primeiros cantos, estendendo os dedos aduncos de predadores e farejando caninamente, às portas das academias, o bom cheiro das nossas mentes em putrefação, já prometidas às catacumbas das bibliotecas.
Mas nós não estaremos lá… Por fim eles nos encontrarão – uma noite de inverno – em campo aberto, sob um triste galpão tamborilado por monótona chuva, e nos verão agachados junto aos nossos aeroplanos trepidantes, aquecendo as mãos ao fogo mesquinho proporcionado pelos nossos livros de hoje flamejando sob o vôo das nossas imagens.
Eles se amotinarão à nossa volta, ofegantes de angústia e despeito, e todos, exasperados pela nossa soberba, inestancável audácia, se precipitarão para matar-nos, impelidos por um ódio tanto mais mais implacável quanto seus corações estiverem ébrios de amor e admiração por nós.
A forte e sã Injustiça explodirá radiosa em seus olhos – A arte, de fato, não pode ser senão violência, crueldade e injustiça.
Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: no entanto, temos já esbanjado tesouros, mil tesouros de força, de amor, de audácia, de astúcia e de vontade rude, precipitadamente, delirantemente, sem calcular, sem jamais hesitar, sem jamais repousar, até perder o fôlego… Olhai para nós! Ainda não estamos exaustos! Nossos corações não sentem nenhuma fadiga, porque estão nutridos de fogo, de ódio e de velocidade!… Estais admirados? É lógico, pois não vos recordais sequer de ter vivido! Eretos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às estrelas!
Vós nos opondes objeções?… Basta! Basta! Já as conhecemos… Já entendemos!… Nossa bela e mendaz inteligência nos afirma que somos o resultado e o prolongamento dos nossos ancestrais. – Talvez!… Seja!… Mas que importa? Não queremos entender!… Ai de quem nos repetir essas palavras infames!…
Cabeça erguida!…
Eretos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às estrelas.”
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
(Álvaro Campos – Fernando Pessoa)
- Aponte alguns aspectos característicos do movimento futurista.
- Que tipo de relação se estabelece entre o enunciador e a máquina?
A terra é uma paisagem imensa que Deus nos deu. Temos que olhar para ela de tal forma que chegue até nós sem deformação. Ninguém duvida de que a essência das coisas não seja a sua realidade exterior. A realidade tem que ser criada por nós. A significação do assunto deve ser sentida. Os fatos acreditados, imaginados, anotados não são o suficiente; pelo contrário, a imagem do mundo tem de ser espelhada puramente e não falsificada. Mas isso está apenas dentro de nós mesmos. (Kasimir Edschmid) (Expressionismo)
A criação artística, evidentemente, não é delírio. Mas é, igualmente, uma alteração, uma deformação, uma transformação da realidade, segundo as leis particulares da arte. A arte, por mais fantástica que seja, não dispõe de nenhum outro material além daquele que lhe fornecem o mundo de três dimensões e o mundo mais estreito da sociedade de classes. Mesmo quando o artista cria o céu ou cria o inferno, ele simplesmente transforma a experiência de sua própria vida em fantasmagorias, até inclusive a conta não-paga do aluguel. (Trotski, 1969, p. 153-4) (Expressionismo)
PRIMEIRO MANIFESTO DADÁ
(Hugo Ball)
Dadá é uma nova tendência da arte. Percebe-se que o é porque, sendo até agora desconhecido, amanhã toda a Zurique vai falar dele. Dadá vem do dicionário. É bestialmente simples. Em francês quer dizer “cavalo de pau” . Em alemão: “Não me chateies, faz favor, adeus, até à próxima!” Em romeno: “Certamente, claro, tem toda a razão, assim é. Sim, senhor, realmente. Já tratamos disso.” E assim por diante.
Uma palavra internacional. Apenas uma palavra e uma palavra como movimento. É simplesmente bestial. Ao fazer dela uma tendência da arte, é claro que vamos arranjar complicações. Psicologia Dadá, literatura Dadá, burguesia Dadá e vós, excelentíssimo poeta, que sempre poetastes com palavras, mas nunca a palavra propriamente dita. Guerra mundial Dadá que nunca mais acaba, revolução Dadá que nunca mais começa. Dadá, vós, amigos e Também poetas, queridíssimos Evangelistas. Dadá Tzara, Dadá Huelsenbeck, Dadá m’Dadá, Dadá mhm’Dadá, Dadá Hue, Dadá Tza.
Como conquistar a eterna bemaventurança? Dizendo Dadá. Como ser célebre? Dizendo Dadá. Com nobre gesto e maneiras finas. Até à loucura, até perder a consciência. Como desfazer-nos de tudo o que é enguia e dia-a-dia, de tudo o que é simpático e linfático, de tudo o que é moralizado, animalizado, enfeitado? Dizendo Dadá. Dadá é a alma-do-mundo, Dadá é o Coiso, Dadá é o melhor sabão-de-leite-de-lírio do mundo. Dadá Senhor Rubiner, Dadá Senhor Korrodi, Dadá Senhor Anastasius Lilienstein.
Quer dizer, em alemão: a hospitalidade da Suíça é incomparável, e em estética tudo depende da norma.
Leio versos que não pretendem menos que isto: dispensar a linguagem. Dadá Johann Fuchsgang Goethe. Dadá Stendhal.
Dadá Buda, Dalai Lama, Dadá m’Dadá, Dadá m’Dadá, Dadá mhm’Dadá. Tudo depende da ligação e de esta ser um pouco interrompida. Não quero nenhuma palavra que tenha sido descoberta por outrem. Todas as palavras foram descobertas pelos outros. Quero a minha própria asneira, e vogais e consoantes também que lhe correspondam. Se uma vibração mede sete centímetros, quero palavras que meçam precisamente sete centímetros. As palavras do senhor Silva só medem dois centímetros e meio.
Assim podemos ver perfeitamente como surge a linguagem articulada. Pura e simplesmente deixo cair os sons. Surgem palavras, ombros de palavras; pernas, braços, mãos de palavras. Au, oi, u. Não devemos deixar surgir muitas palavras.
Um verso é a oportunidade de dispensarmos palavras e linguagem. Essa maldita linguagem à qual se cola a porcaria como à mão do traficante que as moedas gastaram. A palavra, quero-a quando acaba e quando começa.
Cada coisa tem a sua palavra; pois a palavra própria transformou-se em coisa. Porque é que a árvore não há-de chamar-se plupluch e pluplubach depois da chuva? E porque é que raio há-de chamar-se seja o que for? Havemos de pendurar a boca nisso? A palavra, a palavra, a dor precisamente aí, a palavra, meus senhores, é uma questão pública de suprema importância.
Zurique, 14 de Julho de 1916
Manifesto do Surrealismo
(André Breton – 1924)
Tamanha é a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, bem entendido, a vida real, que afinal esta crença se perde. O homem, esse sonhador definitivo, cada dia mais desgostoso com seu destino, a custo repara nos objetos de seu uso habitual, e que lhe vieram por sua displicência, ou quase sempre por seu esforço, pois ele aceitou trabalhar, ou pelo menos, não lhe repugnou tomar sua decisão ( o que ele chama decisão! ) . Bem modesto é agora o seu quinhão: sabe as mulheres que possuiu, as ridículas aventuras em que se meteu; sua riqueza ou sua pobreza para ele não valem nada, quanto a isso, continua recém-nascido, e quanto à aprovação de sua consciência moral, admito que lhe é indiferente. Se conservar alguma lucidez, não poderá senão recordar-se de sua infância, que lhe parecerá repleta de encantos, por mais massacrada que tenha sido com o desvelo dos ensinantes. Aí, a ausência de qualquer rigorismo conhecido lhe dá a perspectiva de levar diversas vidas ao mesmo tempo; ele se agarra a essa ilusão; só quer conhecer a facilidade momentânea, extrema, de todas as coisas. Todas as manhãs, crianças saem de casa sem inquietação. Está tudo perto, as piores condições materiais são excelentes. Os bosques são claros ou escuros, nunca se vai dormir.
Mas é verdade que não se pode ir tão longe, não é uma questão de distância apenas. Acumulam-se as ameaças, desiste-se, abandona-se uma parte da posição a conquistar. Esta imaginação que não admitia limites, agora só se lhe permite atuar segundo as leis de uma utilidade arbitrária; ela é incapaz de assumir por muito tempo esse papel inferior, e quando chega ao vigésimo ano prefere, em geral, abandonar o homem ao seu destino sem luz.
Procure ele mais tarde, daqui e dali, refazer-se por sentir que pouco a pouco lhe faltam razões para viver, incapaz como ficou de enfrentar uma situação excepcional, como seja o amor, ele muito dificilmente o conseguirá. É que ele doravante pertence, de corpo e alma, a uma necessidade prática imperativa, que não permite ser desconsiderada. Faltará amplidão a seus gostos, envergadura a suas idéias. De tudo que lhe acontece e pode lhe acontecer, ele só vai reter o que for ligação deste evento com uma porção de eventos parecidos, nos quais não toma parte, eventos perdidos. Que digo, ele fará sua avaliação em relação a um desses acontecimentos, menos aflitivo que os outros, em suas consequências. Ele não descobrirá aí, sob pretexto algum, sua salvação.
Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares.
Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade. Eu a considero apropriada para manter, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Atende, sem dúvida, à minha única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à servidão, fosse mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se chama a felicidade, é rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça. Só a imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a interdição terrível; é bastante também para que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar ( como se fosse possível enganar-se mais ainda ). Onde começa ela a ficar nociva, e onde se detém a confiança do espírito? Para o espírito, a possibilidade de errar não é, antes, a contingência do bem?
Fica a loucura. “a loucura que é encarcerada”, como já se disse bem. Essa ou a outra.. Todos sabem, com efeito, que os loucos não devem sua internação senão a um reduzido número de atos legalmente repreensíveis, e que, não houvesse estes atos, sua liberdade ( o que se vê de sua liberdade ) não poderia ser ameaçada. Que eles sejam, numa certa medida, vítimas de sua imaginação, concordo com isso, no sentido de que ela os impele à inobservância de certas regras, fora das quais o gênero se sente visado, o que cada um é pago para saber. Mas a profunda indiferença de que dão provas em relação às críticas que lhe fazemos, até mesmo quanto aos castigos que lhes são impostos, permite supor que eles colhem grande reconforto em sua imaginação e apreciam seu delírio o bastante para suportar que só para eles seja válido. E, de fato, alucinações, ilusões, etc. são fonte de gozo nada desprezível. A mais bem ordenada sensualidade encontra aí sua parte, e eu sei que passaria muitas noites a amansar essa mão bonita nas últimas páginas do livro. A Inteligência de Taine, se dedica a singulares malefícios. As confidências dos loucos, passaria minha vida a provocá-las. São pessoas de escrupulosa honestidade, cuja inocência só tem a minha como igual. Foi preciso Colombo partir com loucos para descobrir a América. E vejam como essa loucura cresceu, e durou.
Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da imaginação.
O processo da atitude realista deve ser instruído, após o processo da atitude materialista. Esta, aliás, mais poética que a precedente, implica da parte do homem um orgulho sem dúvida monstruoso, mas não uma nova e mais completa deposição. Convém nela ver, antes de tudo, uma feliz reação contra algumas tendências derrisórias do espiritualismo. Enfim, ela não é incompatível com uma certa elevação de pensamento.
Botafogo
Desfilam algas sereias peixes e galeras
E legiões de homens desde a pré-história
Diante do Pão de Açúcar impassível.
Um aeroplano bica a pedra amorosamente
A filha do português debruçou-se à janela
Os anúncios luminosos lêem seu busto
A enseada encerrou-se num arranha-céu.
(Murilo Mendes)
- Destaque as características surrealistas dos textos do Millôr Fernandes e Murilo Mendes.
- Ilustre os poemas.
O pastor pianista
Soltaram os pianos na planície deserta
Onde as sombras dos pássaros vêm beber.
Eu sou o pastor pianista,
Vejo ao longe com alegria meus pianos
Recortarem os vultos monumentais
Contra a lua.
Acompanhado pelas rosas migradoras
Apascento os pianos: gritam
E transmitem o antigo clamor do homem
Que reclamando a contemplação,
Sonha e provoca a harmonia,
Trabalha mesmo à força,
E pelo vento nas folhagens,
Pelos planetas, pelo andar das mulheres,
Pelo amor e seus contrastes,
Comunica-se com os deuses.
(Murilo Mendes)
- O poema apresenta uma cena com elementos estranhos ao real, que remetem ao universo dos sonhos. Que cena é essa?
- O título do poema apresenta mais de um significado possível. Qual seria o significado mais convencional da expresão pastor pianista?
- Na última estrofe, o eu lírico deixa de se referir aos pianos e passa a refletir sobre a natureza humana. Quais são, segundo o eu lírico, as ações desempenhadas pelo homem no mundo?
- Por meio de que meios o homem “comunica-se com os deuses.”
FERNANDO PESSOA (ortônimo)
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
(F. Pessoa)
Eros e Psique
…E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade. (Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio
Na Ordem Templária De Portugal)
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Eros e Psique
1. Qual o sentido do poema?
Abdicação
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho… eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa – eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços
Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
1. Explique a metáfora de rei, reinado que o poeta faz.
2. O que o poeta abdica?
O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão…
São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.
São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.
1. Qual é a dor sentida pelo poeta?
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
LIBERDADE
Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa…
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca…
1.Explique como ocorre essa liberdade para o poeta.
Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
Isto
Dizem que eu finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda.
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio.
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
NAVEGAR É PRECISO
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
“Navegar é preciso; viver não é preciso”.
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
1. Como o poeta pode tornar a sua vida grande?
Mensagem – Fernando Pessoa – ortônimo
I. Os symbolos
Primeiro/D. Sebastião
Espere! Cai no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.
Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É o que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.
II. Os Castellos
Primeiro/Ulisses
O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.
MAR PORTUGUÊS
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
III. As Quinas
Quina/D. Sebastião, Rei de Portugal
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
III. Os Tempos
Quinto/Nevoeiro
NEM REI nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerr.
Ninguém sabe que coisa quere.
Ninguém conhece que alma tem.
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que anciã distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro…
É a Hora!
Valete, Frates (Valei, irmãos)
FERNANDO PESSOA (Alberto Caeiro)
I
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que
se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.
1. “Os pensamentos de Alberto Caeiro não passam de sensações”, isso pode ser comprovado no poema? Que palavras justificam a afirmação?
2. Fala-se de um paganismo de Caeiro. Pela leitura do poema, você diria que Caeiro acredita ou não em Deus? Por quê?
FERNANDO PESSOA (Ricardo Reis)
Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,
Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,
Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.
Que trono te querem dar
Que átropos to não tire?
Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?
Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra
Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.
(Ricardo Reis)
1.Por que o poeta aconselha a não ter nada nas mãos?
2. Qual o sentido de ser rei de si próprio?
Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo,
E ao beber nem recorda
Que já bebeu na vida,
Para quem tudo é novo
E imarcescível sempre.
Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúteis,
Ele sabe que a vida
Passa por ele e tanto
Corta à flor como a ele
De Átropos a tesoura.
Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
Que o seu sabor orgíaco
Apague o gosto às horas,
Como a uma voz chorando
O passar das bacantes.
E ele espera, contente quase e bebedor tranqüilo,
E apenas desejando
Num desejo mal tido
Que a abominável onda
O não molhe tão cedo.
1. O sábio, segundo Ricardo Reis, é uma pessoa que se contenta com o simples e parece ter pouca memória. Por que o poeta o descreve assim? Que consequências boas podem ocorrer com isso?
Só esta liberdade nos concedem
Os deuses: submetermo-nos
Ao seu domínio por vontade nossa.
Mais vale assim fazermos
Porque só na ilusão da liberdade
A liberdade existe.
Nem outro jeito os deuses, sobre quem
O eterno fado pesa,
Usam para seu calmo e possuído
Convencimento antigo
De que é divina e livre a sua vida.
Nós, imitando os deuses,
Tão pouco livres como eles no Olímpio,
Como quem pela areia
Ergue castelos para encher os olhos,
Ergamos nossa vida
E os deuses saberão agradecer-nos
O sermos tão como eles.
- O poeta diz que “na ilusão da liberdade a liberdade existe” . Explique.
- Explique a comparação entre deuses e seres humanos.
FERNANDO PESSOA (Álvaro de Campos)
É antes do ópio que a minh’alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
já não encontro a mola pra adaptar-me.
Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.
É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.
Vou cambaleando através do lavor
Duma vida-interior de renda e laca.
Tenho a impressão de ter em casa a faca
Com que foi degolado o Precursor.
Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vala.
Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes,
Ergue-se a lua como a minha Sina.
Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
A minha vida, cânfora na aurora.
Perdi os dias que já aproveitara
Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.
E fui criança como toda a gente.
Nasci numa província portuguesa
E tenho conhecido gente inglesa
Que diz que eu sei inglês perfeitamente.
Gostava de ter poemas e novelas
Publicados por Plon e no Mercure,
Mas é impossível que esta vida dure.
Se nesta viagem nem houve procelas!
A vida a bordo é uma coisa triste,
Embora a gente se divirta às vezes.
Falo com alemães, suecos e ingleses
E a minha mágoa de viver persiste.
Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.
Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.
Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?
Sou desgraçado por meu morgadio.
Os ciganos roubaram minha Sorte.
Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte
Um lugar que me abrigue do meu frio.
Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avòzinha que anda
Pedindo esmola às portas da Alegria.
Não chegues a Port-Said, navio de ferro!
Volta à direita, nem eu sei para onde.
Passo os dias no smokink-room com o conde –
Um escroc francês, conde de fim de enterro.
Volto à Europa descontente, e em sortes
De vir a ser um poeta sonambólico.
Eu sou monárquico mas não católico
E gostava de ser as coisas fortes.
Gostava de ter crenças e dinheiro,
Ser vária gente insípida que vi.
Hoje, afinal, não sou senão, aqui,
Num navio qualquer um passageiro.
Não tenho personalidade alguma.
É mais notado que eu esse criado
De bordo que tem um belo modo alçado
De laird escocês há dias em jejum.
Não posso estar em parte alguma.
A minha Pátria é onde não estou.
Sou doente e fraco.
O comissário de bordo é velhaco.
Viu-me co’a sueca… e o resto ele adivinha.
Um dia faço escândalo cá a bordo,
Só para dar que falar de mim aos mais.
Não posso com a vida, e acho fatais
As iras com que às vezes me debordo.
Levo o dia a fumar, a beber coisas,
Drogas americanas que entontecem,
E eu já tão bêbado sem nada! Dessem
Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.
Escrevo estas linhas. Parece impossível
Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!
O fato é que esta vida é uma quinta
Onde se aborrece uma alma sensível.
Os ingleses são feitos pra existir.
Não há gente como esta pra estar feita
Com a Tranqüilidade. A gente deita
Um vintém e sai um deles a sorrir.
Pertenço a um gênero de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
Tenho pensado nisto muitas vezes.
Leve o diabo a vida e a gente tê-la!
Nem leio o livro à minha cabeceira.
Enoja-me o Oriente. É uma esteira
Que a gente enrola e deixa de ser bela.
Caio no ópio por força. Lá querer
Que eu leve a limpo uma vida destas
Não se pode exigir. Almas honestas
Com horas pra dormir e pra comer,
Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.
Porque estes nervos são a minha morte.
Não haver um navio que me transporte
Para onde eu nada queira que o não veja!
Ora! Eu cansava-me o mesmo modo.
Qu’ria outro ópio mais forte pra ir de ali
Para sonhos que dessem cabo de mim
E pregassem comigo nalgum lodo.
Febre! Se isto que tenho não é febre,
Não sei como é que se tem febre e sente.
O fato essencial é que estou doente.
Está corrida, amigos, esta lebre.
Veio a noite. Tocou já a primeira
Corneta, pra vestir para o jantar.
Vida social por cima! Isso! E marchar
Até que a gente saia pla coleira!
Porque isto acaba mal e há-de haver
(Olá!) sangue e um revólver lá pró fim
Deste desassossego que há em mim
E não há forma de se resolver.
E quem me olhar, há-de-me achar banal,
A mim e à minha vida… Ora! um rapaz…
O meu próprio monóculo me faz
Pertencer a um tipo universal.
Ah quanta alma viverá, que ande metida
Assim como eu na Linha, e como eu mística!
Quantos sob a casaca característica
Não terão como eu o horror à vida?
Se ao menos eu por fora fosse tão
Interessante como sou por dentro!
Vou no Maelstrom, cada vez mais pró centro.
Não fazer nada é a minha perdição.
Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!
Pudesse a gente desprezar os outros
E, ainda que co’os cotovelos rotos,
Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!
Tenho vontade de levar as mãos
À boca e morder nelas fundo e a mal.
Era uma ocupação original
E distraía os outros, os tais sãos.
O absurdo, como uma flor da tal Índia
Que não vim encontrar na Índia, nasce
No meu cérebro farto de cansar-se.
A minha vida mude-a Deus ou finde-a…
Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,
Até virem meter-me no caixão.
Nasci pra mandarim de condição,
Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.
Ah que bom que era ir daqui de caída
Pra cova por um alçapão de estouro!
A vida sabe-me a tabaco louro.
Nunca fiz mais do que fumar a vida.
E afinal o que quero é fé, é calma,
E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —
E basta de comédias na minh’alma!
Ode Triunfal
À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eternos!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
[…]
Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!
Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!
Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!
- Que elementos do mundo moderno aparecem nos versos transcritos?
- Qual é a impressão que o eu lírico manifesta, na 1ª estrofe, sobre essa nova realidade?
- Transcreva os versos em que o eu lírico manifesta desejo de tornar-se máquina.
LISBON REVISITED (Lisboa Revisitada)
Não: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-a!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro a técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havermos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja a companhia!
Ó céu azul – o mesmo de minha infância –
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo…
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncioquero estar sozinho!
1. Destaque as partes nas quais Álvaro de Campos demonstra sua revolta contra os padrões sociais.
2. Destaque um verso em que o poeta explicita sua profissão.
- Vários textos de Álvaro de Campos evocam uma melancolia saudade de sua infância, de tempos remotos, destruídos e irrecuperáveis. Destaque um verso do texto em que esse tipo de saudade se manifesta.
TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim…
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas –
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno – não concebo bem o quê –
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de
coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
1. Por que o poeta diz que não é nada?
2. Por que o poeta diz não crer nem em si mesmo?
3. Para quem é o mundo?
4. Explique o título do poema.
5. Com qual vanguarda européia você classifica o poema?
6. Explique o último verso do poema.
POEMA EM LINHA RETA
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
1. Como o eu lírico vê a si próprio? Descreva.
2. Qual a situação econômica do eu lírico? Justifique.
3. Qual a crítica que está implícita no poema?
4. O que o poeta quis dizer com: Poderão as mulheres não os terem amado , / Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca! /E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído.”
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
Quase
Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…
Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quase vivido…
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim – quase a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo … e tudo errou…
– Ai a dor de ser – quase, dor sem fim…
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou…
Momentos de alma que, desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ânsias que foram mas que não fixei…
Se me vagueio, encontro só indícios…
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios…
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…
Um pouco mais de sol – e fora brasa,
Um pouco mais de azul – e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…
- Explique o verso “Se ao menos eu permanecesse aquém”.
- Por que o poeta disse que nada foi só ilusão?
- Qual é a dor de ser-quase do poeta?
Dispersão
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida…
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:
Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).
O pobre moço das ânsias…
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismaste nas ânsias.
A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.
Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.
Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que protejo:
Se me olho a um espelho, erro –
Não me acho no que projeto.
Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.
Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi… Mas recordo
A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.
(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que sonhei!… )
E sinto que a minha morte –
Minha dispersão total –
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.
Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.
Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas…
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas…
Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar…
Ninguém mas quis apertar…
Tristes mãos longas e lindas…
Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal…
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?… Ai de mim!…
Desceu-me n’alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.
Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço…
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço…
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba…
- Como o poeta justifica a saudade que sente de si mesmo?
- Em dada estrofe do poema, o eu poético profetiza a própria morte. Que estrofe é essa?
Caranguejola
– Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada…
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!
Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado…
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira –
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.
Não, não estou para mais – não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar…
Que querem fazer de mim com este enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar…
Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho – que amor…
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor –
Pelo menos era o sossego completo… História! Era a melhor das vidas…
Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
– Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito…
De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom edrédon, bom fogo –
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza…
Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co’a breca! Levem-me prà enfermaria! –
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará.
Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível – por causa da legenda…
Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda –
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo…
Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora, no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras:
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.
- Este foi um dos últimos poemas escritos por Sá-Carneiro. Identifique nele informações autobiográficas.
OSWALD DE ANDRADE
A Descoberta
Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra
os selvagens
Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam por a mão
E depois a tomaram como espantados
primeiro chá
Depois de dançarem
Diogo Dias
Fez o salto real
as meninas da gare
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha.
Verbo crackar
Eu empobreço de repente
Tu enriqueces por minha causa
Ele azula para o sertão
Nós entramos em conscordata
Vós protestais por preferência
Eles escafedem a massa
Sê pirata
Sede trouxas
Abrindo o pala
Pessoal sarado
Oxalá que eu tivesse sabido que esse verbo era irregular.
Azorrague
-Chega! Peredoa!
Amarrados na escada
A chibata preparava os cortes
Para a salmoura
Canto de Regresso à Pátria
Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá
Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra
Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo.
Brasil
O Zé Pereira chegou de caravela
E preguntou pro guarani da mata virgem
— Sois cristão?
— Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Teterê Tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
— Sim pela graça de Deus
Canhém Babá Canhém Babá Cum Cum!
E fizeram o Carnaval
Relicário
No baile da Corte
Foi o conde d’Eu quem disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
É come bebê pita e caí
Ocaso
No anfiteatro de montanha
Os profetas do Aleijadinho
Monumentalizam a paisagem
As cúpulas brancas dos Passos
E os cocares revirados das palmeiras
São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu
Bíblia de pedra-sabão
Banhada no ouro das minas
Medo da Senhora
A escrava pegou a filhinha nascida
Nas costas
E se atirou no Paraíba
Para que a criança não fosse judiada.
As Meninas da Gare
Eram três ou quatro moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha
Amor
Humor
O capoeira
– Qué apanhá sordado?
– O quê?
– Quê apanhá?
Pernas e cabeças na calçada.
Escapulário
No Pão de Açúcar
De Cada Dia
Dai-nos Senhor
A Poesia
De Cada Dia
são josé del rei
Bananeiras
O Sol
O cansaço da ilusão
Igrejas
O ouro na serra de pedra
Oferta
Quem sabe
Se algum dia
Traria
O elevador
Até aqui
O teu amor
3 de maio
Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi
Senhor Feudal
Se Pedro Segundo
Vier aqui
Com história
Eu boto ele na cadeia
Ditirambo
Meu amor me ensinou a ser simples
Como um largo de igreja
Onde não há nem um sino
Nem um lápis
Nem uma sensualidade
Aperitivo
A felicidade anda a pé
Na praça Antônio Prado
São 10 horas azuis
O café vai alto como a manhã de arranha-céus
Cigarros Tietê
Automóveis
A cidade sem mitos
Balada do esplanada
Ontem à noite
Eu procurei
Ver se aprendia
Como é que se fazia
Uma balada
Antes de ir
Pro meu hotel.
É que este
Coração
Já se cansou
De viver só
E quer então
Morar contigo
No Esplanada.
Eu qu’ria
Poder
Encher
Este papel
De versos lindos
É tão distinto
Ser menestrel
No futuro
As gerações
Que passariam
Diriam
É o hotel
Do menestrel
Pra m’inspirar
Abro a janela
Como um jornal
Vou fazer
A balada
Do Esplanada
E ficar sendo
O menestrel
De meu hotel
Mas não há poesia
Num hotel
Mesmo sendo
‘Splanada
Ou Grand-Hotel
Há poesia
Na dor
Na flor
No beija-flor
No elevador
O Rei da Vela de Oswald de Andrade (1937)
É uma obra representativa da década de 30, e marca uma época de preocupações e compromissos sociais. A peça é considerada o primeiro texto modernista para teatro. Nas experiências inovadoras anteriores, apenas a encenação tinha ares modernistas ao incluir a pintura abstrata nos cenários e afastá-los do realismo e do simbolismo. Mas o texto de Oswald de Andrade trata com enfoque marxista a sociedade decadente, com a linguagem e o humor típicos do modernismo.
Escrito a partir de 1933, depois da crise mundial de 1929, da Revolução de 30 e da Revolução Constitucionalista de 32, o texto manifesta a imensa amargura de Oswald, forçado a percorrer infindáveis escritórios de agiotagem para equilibrar-se financeiramente. Esse seu contato forçado com agiotas foi, provavelmente, a causa da caracterização de um agiota como Rei da Vela. Mas o texto supera a experiência pessoal de Oswald: ele fornece, sem falsas sutilezas, os mecanismos da engrenagem em que se baseia o esquema socioeconômico do país.
Toda a dramaturgia que veio da crise financeira que abalou Oswald e o fez procurar recursos em escritórios de agiotas, é um laboratório de informações precisas e importantes para a constituição dramatúrgica e estética de seu texto. Os elementos estéticos da cenografia por ele imaginado são evidenciados em suas rubricas, extraídos da situação em que viveu, transportadas de forma exemplar para o texto. Evidencia-se o fato da procura de Oswald em vários escritórios, como também os detalhes que o cercavam.
Pelo seu caráter pouco convencional, só foi levada a cena trinta anos depois, integrando o movimento tropicalista. Constitui-se num marco para a cultura brasileira, desencadeador do movimento Tropicalista. Fruto de grandes sínteses estéticas da cena internacional do período, consolidou procedimentos que, muitos anos após, seriam considerados pós-modernos.
Quando de sua primeira apresentação, em 1968, o texto causou grande impacto sobre o público. Este se manifestou das mais diversas formas, desde afirmações que definiam o espetáculo como “ridículo e pornográfico” a opiniões que viam nele “uma crítica da atualidade”. Não houve, porém, ninguém que permanecesse indiferente.
A peça conta a história de um agiota inescrupuloso, Abelardo I, o Rei da Vela. Com negócios diversificados, sua especialidade são empréstimos. Aproveitando-se da crise econômica que flagela o país, Abelardo empresta dinheiro e cobra juros escorchantes. E ai daquele que se atrever a chamá-lo de usurário. Reforma os títulos, até o dia em que cobra tudo e deixa liso o devedor.
Prepotente, Abelardo pisa em quem pode, mas sabe que é apenas “um feitor do capital estrangeiro”. Ingleses e norte-americanos comandam o jogo, no qual brasileiro só faz figuração. Heloísa, por exemplo, deve servir ao Americano, personagem que entra em cena no segundo ato da peça.
A história se inicia em seu escritório.
Burguês enriquecido à custa da privação alheia, Abelardo I é um representante da burguesia ascendente da época. Seu oportunismo, aliado a crise da Bolsa de Valores de Nova York, de 1929, permite-lhe todo tipo de especulação: com o café, com a indústria etc. Sua caracterização como o “Rei da Vela” é extremamente irônica e significativa: ele fabrica e vende velas, pois “as empresas elétricas fecham com a crise. Ninguém mais pode pagar o preço da luz”. Também é costume popular colocar uma vela na mão de cada defunto, assim Abelardo I “herda um tostão de cada morto nacional”. Abelardo torna-se então o símbolo da exportação, a custa da pobreza e das supertições populares. Como personagem, ele também denuncia a invasão do capital estrangeiro; daí a irônica consideração sobre “a chave milagrosa da fortuna, uma chave yale”. No primeiro ato, Oswald demonstra didaticamente várias facetas do personagem: surge Abelardo II, empregado de Abelardo I, que pretende superá-lo. Entra um devedor que Abelardo I explora há anos e decide executar. Vários devedores são mostrados gritando através de uma jaula. Transcorre uma cena em que são examinadas as contas dos clientes, dando uma ideia do funcionamento do escritório em após uma cena com a secretária, entra Heloísa de Lesbos, noiva de Abelardo I.
Heloísa representa a ruína da classe fazendeira. Seu pai, coronel latifundiário, vai à falência, num retrato em que predomina a perversão e o vício, símbolo de uma classe em decadência. A aliança de Abelardo e Heloísa pode, assim, representar a fusão de duas classes sociais corruptas pelo sistema capitalista.
Até mesmo a escolha dos nomes é irônica: Abelardo e Heloísa são dois famosos amantes da Idade Média: ele, um teólogo francês de século XII, ela, sobrinha de um sacerdote. Pouco tem a ver, portanto, com as personagens oswaldianas. Entre os noivos de Oswald, não há idealismo: Heloísa casa-se por interesse, fato sabido por Abelardo I, que também vê vantagens na aliança. Na verdade, Heloísa é membro de uma família da aristocracia rural falida e Abelardo I, da burguesia em ascensão. O casamento entre ambos é uma metáfora: com ele, Oswald simboliza a união entre essas duas classes sociais.
Surge um intelectual, Pinote, e o autor aproveita para mostrar a relação dos intelectuais e artistas com o poder: ou o artista aceita seu compromisso social ou, como Pinote, decide servir à burguesia. Não existe neutralidade possível. Com a saída de Pinote, um diálogo entre Abelardo I e Heloísa volta a defini-los como elementos das classes abastadas, que vivem do suor dos trabalhadores. Em seguida, Abelardo I prepara-se para a chegada do representante do capital estrangeiro, Mr. Jones. A presença de Mr. Jones presença revela um país endividado: “os ingleses e americanos temem por nós. Estamos ligados ao destino deles. Devemos tudo o que temos e o que não temos. Hipotecamos palmeiras… quedas de águas. Cardeais!”
Com esta última personagem, Oswald completa o triunvirato que rege o país: a aristocracia rural (Heloísa) que se une à burguesia nacional (Abelardo I), para melhor servir ao capital estrangeiro (Mr. Jones).
Assim, logo no início do segundo ato, que se passa em uma ilha tropical na Baía de Guanabara, surge Heloísa em franca camaradagem amorosa com Mr. Jones. Oswald utiliza a técnica da concentração de personagens com desvios (em geral sexuais) em uma só família para explicar a decadência da aristocracia rural. Assim, Heloísa de Lesbos possui, como o próprio nome indica, tendências homossexuais. D. Cesarina, sua mãe, mostra-se francamente acessível às investidas amorosas de Abelardo I. Totó Fruta-do-Conde, o irmão homossexual, acaba de roubar o amante da irmã, Joana, sarcasticamente apelidado João dos Divãs. O coronel Belarmino, pai de Heloísa e chefe da família, suspira por um mundo em decadência, o mundo da aristocracia rural. E Perdigoto, outro irmão da moça, bêbado e jogador, é um fascista que planeja organizar uma “milícia patriótica” para conter os colonos descontentes – ideia que interessa a Abelardo I, desde que ela possa ser utilizada para a manutenção da ordem social de que depende sua riqueza.
Os desvios sexuais continuam sendo identificados com a decadência da aristocracia rural. O americano interessa-se pelo chofer e, finalmente, D. Poloca, pilar das tradições aristocratas e virgem com mais de sessenta anos, sente-se tentada a passar uma noite com Abelardo I.
O último ato, tortuoso e alegórico, ocorre no escritório de usura. Abelardo I foi roubado por Abelardo II. Perdeu tudo o que tinha e vai suicidar-se. Abelardo I lembra a Heloísa que ela se casará com Abelardo II, o ladrão. Morre o homem, mas o sistema permanece. Antes de morrer, Abelardo I mostra-se uma personagem consciente ao discutir com Abelardo II, garantindo que a burguesia está condenada e que os proletários se unirão para tomar o poder. Mas que até esse dia os dois, a aristocracia rural e a burguesia nacional, continuarão submetidos ao americano, o capital estrangeiro. Apesar de sua consciência, pede uma vela antes de morrer. Recebe uma vela das mais baratas e, falido, o Rei da Vela será enterrado em uma vala comum. A peça termina aos acordes nupciais do casamento de Abelardo II com Heloísa. O americano comenta: “Oh! Good Business!”
No texto, com grande poder de síntese, Oswald usa elementos que só seriam descobertos muito depois pela dramaturgia brasileira. Um deles é o rompimento com a ilusão teatral (sem ter lido Brecht). Assim, logo após a saída do cliente, Abelardo I afirma: “esta cena basta para nos identificar perante o público”. Desse modo, a peça recusa-se a cair o ilusionismo teatral. Por sua vez, as personagens representam estágios de uma sociedade, não necessitando de diferentes nomes, desde que ocupem a mesma função. É o caso de Abelardo I e Abelardo II, ambos representantes de um mesmo setor da burguesia nacional. As figuras em cena caracterizam-se como anti-heróis, expressões negativas de um mundo decadente. E o texto é cheio de sarcasmos traduzidos em uma linguagem rica e brilhante que lhes confere uma ciranda de significados.
Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) de Oswald de Andrade
Machado Penumbra abre o romance com um prefácio em que dá boas-vindas a João Miramar, saudando sua ‘entrada de homem moderno na espinhosa carreira das letras’.
A partir daí, é narrada a trajetória desse novo escritor, sujeito ingênuo, educado na acanhada cidade de São Paulo, no começo do século. É um intelectual provinciano, cuja família rica vive da extração de café.
Na abertura, Miramar, ainda garotinho, é levado pela mãe ao oratório familiar e lá entre a imagem do manequim, propriedade materna, e a oração, o garoto pensa e reza:
‘__ Senhor convosco, bendita sois entre as mulheres, as mulheres não têm pernas, são como o manequim de mamãe até em baixo. Para que perna nas mulheres, amém’.
Outra experiência do menino João recebe o título ‘Gatunos de Crianças’ e é assim condensada: ‘O circo era um balão aceso com música e pastéis na entrada. E funâmbulos cavalos palhaços desfiaram desarticulações risadas para meu trono de pau com gente em redor. Gostei muito da terra da Goiabada e tive inveja da vontade de ter sido roubado pelos ciganos’. E, assim, em fragmentos, a trajetória de Miramar prossegue.
A viagem de navio à Europa vai destacando as cidades: manhã no Rio, Tenerife, Terra firme – Barcelona, Torre Eiffel, Milão, Vaticano, Sorrento, Veneza, etc. O namoro com Célia é assim apresentado: ‘Vinham motivos como gafanhotos para eu e Célia comermos amoras em moitas de bocas. Requeijões fartavam mesas de sequilhos.
Destinos calmos como vacas quietavam nos campos de sol parado. A vida ia lenta como pontes e queimadas. Um matinal arranjo desenvolto de ligas morenava coxas e cachos’.
O casamento não passa sem registro: ‘O Forde levou-nos para igreja e notário entre matos derrubados e a vasta promessa das primeiras culturas. Jogaram-nos flores como bênçãos e sinos tilintaram. A lua substituiu o sol na guarita do mundo, mas o dia continuou tendo havido entre nós apenas uma separação precavida de bens’. E a seguir, o nascimento do primeiro filho: ‘Minha sogra ficou avó’.
O tempo passa e Miramar se apaixona por uma estrela de cinema, Madame Rolah, e a esposa logo percebe a ausência do marido: ‘… Não se esqueça de todas as minhas outras encomendas e traga também um par de sapatos de lona branca para Celiazinha. Vai a medida do pé. Temos tido muito calor nestes dias. Por que é que não me escreves? Veja se vem logo. Abraça-te e beija-te. Tua Célia’.
Mas, Miramar só tem olhos para a amante, passando dias maravilhosos com ela, enquanto a sogra e filhos percorrem a Europa, pedindo com frequência o envio de dinheiro: ‘… Nós não vamos embora para o Brasil porque mamãe tem medo dos sobremarinos. P.S. Vimos a Ponte dos Suspiros onde morreu Romeu e Julieta e tiramos um retrato pegando nas pombas. Nair’.
Os negócios vão mal, mas o romance com Rolah…: ‘Ela me tinha confessado pela manhã que seus amores anteriores com pastores não tinham passado de pequenos flertes de criança. Agora quando tínhamos descido a escada longa eu me tinha baixado até os orquestrais cabelos louros. E tínhamo-nos juntando no grande doce e carnoso grude dum grande beijo mudo como um surdo’.
Célia descobre tudo e exige a presença do marido na Fazenda Bambus: ‘Entrei em Higienópolis para jantar e sobre a mesa um telegrama azul exigia minha imediata presença nos Bambus. Célia sabia tudo laconicamente’.
A família é levada à falência e desonra: ‘Higienópolis encheu-se às cornetadas da falência e desonra. Meu folhetim foi distribuído grátis a amigos e criados. E tia Gabriela sogra granadeira grasnou graves grosas de infâmias. Entrava doméstico para comer e dormir longe de Célia. Os criados eram garçons de restaurante’.
As dívidas são muitas e têm de ser pagas: ‘Eu e o conde e o Britinho éramos de semanas os autores mais citados na pendenga madura da sala de verdes audiências do Forum Cível Paulista. Capinhas pretas enrouqueciam com pinga derredor das oblongas mesas zunzum com a lonjura de nossos privilegiados nomes protestados.
Primeiras praças anunciaram-se dos bens legados por inventário de mãe únicos válidos havidos para credores ante a Verdun contratual do separado casamento com Célia…’
A esposa falece e João Miramar decide interromper as memórias, motivando a seguinte entrevista: ‘__ Com que então o ilustre homem pátrio de letras não prossegue suas interessantíssimas memórias? ___ Não. ___Seria permitido ao grosso público ledor não ignorar as razões ocultas da grave decisão que prejudica assim a nossa nascente literatura? ___ Razões de estado. Sou viúvo de D. Célia. ___ Daí? ___ Disse-me o dr. Mandarim que os viúvos devem ser circunspectos. Mais, que depois dos trinta e cinco anos, mezzo del camin di nostra vita, nossa atividade sentimental não pode ser escandalosa, no risco de vir a servir de exemplo pernicioso às pessoas idosas…
Serafim Ponte Grande (1933) – Oswald de Andrade
Possui o espírito do Primeiro Tempo Modernista (1922-30), pois foi produzido durante o clima iconoclasta desse período. Essa é a explicação tanto para os seus méritos como para seus defeitos.
Apesar de ser considerado continuação de Memórias Sentimentais de João Miramar, a presente obra representa um dos pontos máximos da prosa dos anos heroicos do modernismo, mesmo que não chegue perto de Brás, Bexiga e Barra Funda, de Antônio de Alcântara Machado ou de Macunaíma, de Mário de Andrade. Seu grande valor está no cuidado em se colocar na vanguarda literária de seu tempo.
Sua temática, por exemplo, se não é moderna, é típica do Modernismo. Despeja-se um humor corrosivo em cima das tradições e valores de uma classe social da qual faz parte e chega a compactuar em certos momentos: a burguesia paulistana. É uma postura contraditória, mas muito comum entre os primeiros modernistas.
A começar, chama a atenção, no relato das memórias de Serafim Ponte Grande, a sexualização constante, já presente no primeiro capítulo:
PRIMEIRO CONTATO DE SERAFIM E A MALÍCIA
A – e – i – o – u
Ba – Be – Bi – Bo – Bu
Ca – Ce – Ci – Co – Cu
Essa erotização intensa é justificada pela vinculação dos ideais oswaldianos à psicologia freudiana e, principalmente, à Antropofagia, movimento literário criado por Oswald de Andrade. Não se deve esquecer que Serafim Ponte Grande é uma realização, concretização dos postulados poéticos do autor. De acordo com eles, é importante buscar uma sociedade mais autêntica, por ser mais primitiva e respeitadora dos impulsos carnais. Nada de repressão, nada do refreamento judaico-cristão. A liberação dos impulsos sexuais, portanto, deve ser valorizada, mesmo que escandalize os padrões burgueses tradicionais.
Dentro desse aspecto, como se disse, a sexualização da personagem é constante. E a primeira consequência é o casamento forçado que realiza com Lalá, pois a desvirginou e, dentro dos modelos sociais, deveria manter a moral e o decoro por meio do matrimônio. Mas o resultado é uma união medíocre, poder-se-ia até dizer “pequena-burguesa”, em que, na cama, um enxerga no parceiro um ideal vindo do cinema e não da realidade.
É nesse ambiente doméstico, além da repartição pública em que Serafim trabalha, que gravita um grupo de personagens-tipos, eficientes para o autor realizar sua crítica social. Lá estão Birimba, traficante de cocaína, Manso, que acaba desenvolvendo uma proximidade estranha e perigosa com Lalá, Benedito Carlindonga, odioso chefe, e Pinto Calçudo, personagem odiosa, mas que não desgruda do protagonista, pois é um típico bajulador.
O casamento rui de vez depois que Serafim estabelece uma paixão por sua prima recém-chegada, Dorotéia. Mas é um amor frustrado, por não ser correspondido. O pior é que ela acaba fugindo com Birimba, vivendo com ele no Rio de Janeiro e se tornando uma difamada estrela de cinema.
Com a derrocada do matrimônio, o herói acaba-se tornando o franco-atirador do sistema, dirigindo-se a ele de forma extremamente ácida e sarcástica. No entanto, com extrema lucidez (parece representar perfeitamente o comportamento de nosso povo) declara: “tenho um canhão e não sei atirar”.
Até que fabulosamente se torna milionário. A partir desse ponto, além de a narrativa perder seu excelente ritmo, o protagonista passa a ter o comportamento de novo-rico, virando um playboy que se ocupa em passear na Europa e no Oriente. Mas não tem condições culturais de aproveitar sagradamente seu novo status. É o que de maneira sagaz constata quando descreve seu olhar de turista no Velho Mundo como o de uma vaca observando a paisagem.
Apaixona-se por Branca Clara, provavelmente uma espanhola, pelo tipo de sotaque recriado, mas não é correspondido. Luta para conquistar a chique Dona Solanja, que acha paixão um sentimento vulgar. No entanto, quando ela está prestes a sucumbir diante do herói, fica enraivecida quando este deixa de lhe dar atenção ao ver à sua frente Dorotéia. A grande dama, despeitada, toma a arma de Serafim (ele tentara praticar assassinato, mas errara) e mata Dorotéia a suposta rival. O público acaba por lichar Dona Solanja.
Viaja para o Oriente. Grécia, Egito, Palestina. É lá que se encanta com Caridad-Claridad e Pafuncheta, figuras que mais brincam do que concretizam algo com o protagonista. Depois de muito negaceio, consegue conquistar Caridad.
No final, acaba voltando para o Brasil, mergulhando na alienação. Ainda se abre espaço para a explicação do fim que levaram algumas personagens, principalmente Pinto Calçudo. Durante a viagem de Serafim para a Europa, o protagonista havia expulsado da história o puxa-saco, pois achava que este estava tomando muito espaço na narrativa. Agora Pinto Calçudo aparecia no navio El Durasno, onde acaba instituindo os ideais da Antropofagia (aliás, esse o nome do trecho em questão): liberação completa dos impulsos sexuais, abandono do padrão ocidental. Chegam até a andar sem roupas, só as colocando quando se aproximam de algum porto. E não descem a terra, nem querem contatos, dando a desculpa que estão com peste.
A impressão que uma narrativa como essa passa é de caos completo. Uma explicação, lisonjeira, daria conta de que tal sensação é aceitável, pois seu caráter inovador, moderno, foge aos padrões tradicionais aos quais o leitor comum está acostumado, daí a impressão caótica que deixa.
Mas quem quer atacar a obra faz questão de lembrar que a impressão de desordem é típica nos textos de Oswald de Andrade, pois ele foi um autor iconoclasta que dinamitou todo o sistema e dedicou-se, depois, a apenas ajuntar seus cacos sem critério algum. Engraçadamente, é a mesma sensação que se tem ao ler Macunaíma. A diferença é que é na obra de Oswald de Andrade que a crítica mais tem se dividido radicalmente nessas duas oposições.
Deixando de lado, pelo menos por enquanto, esta polêmica, há que se enxergar alguns elementos em Serafim Ponte Grande. O primeiro que chama a atenção é a linguagem telegráfica, extremamente concisa. É o seu melhor aspecto, pois, além de dar velocidade à narrativa, torna o texto mais denso, pois acaba criando toda uma teia de informações sugeridas, subentendidas. Tal aspecto acaba por criar na obra capítulos curtíssimos, que lembram os famosos poemas-piada ou poemas-pílula, altamente consagradas no Primeiro Tempo Modernista.
Há que se ressaltar o emprego dos ideais da antropofagia, que acabam por representar muito bem nosso caráter cosmopolita. Somos subdesenvolvidos, mas não simplesmente copiamos o padrão estrangeiro. Nossa criatividade e identidade estão em adaptar e dar um jeito nosso a tais elementos. Além disso, essa poética, hoje, pode ser vista como uma protoglobalização. Note como o elemento estrangeiro se mistura ao nacional, não só na linguagem (na mistura de sotaques e de línguas); existem também mistura quando se vê as personagens, seja em Paris, seja no Oriente Médio, foxtrotando ou charlestonando.
Tocou-se, aliás, em outro ponto valoroso da obra, que é a inventividade constante de sua linguagem, não só quanto ao emprego dos neologismos e da recriação do português coloquial brasileiro (pedra de toque do Modernismo), mas também pelo que se costumou chamar de “metáfora lancinante”, como os seguintes exemplos, pinçados a esmo: “Um gramofone sentimentaliza o planeta e a alemãzinha atira os seios como pedradas no lago”, “um inglês velho mergulha no uísque invisível duma espécie de midinette turca com olheiras. Enquanto uma miss esbelta atravessa a nado o canal e chama o chamado do Oriente como um cachorro para copular de pressa, de óculos”.
Enfim, trata-se de uma obra com uma enorme engenhosidade e criatividade, mas que não soube manter-se regular. Além disso, acaba por ter muito ar de datada, caduca, presa ao momento em que foi criada. Fica, portanto, a dever para Memórias Sentimentais de João Miramar. Mas, ainda assim, tem uma enorme importância histórica.
Trechos:
Culturização
Nosso herói pede ao chauffeur que o conduza e elucide a propósito dos grandiosos monumentos que perpetuam a formosa capital do Universo Civilizado. O cinesiforo leva-o à bastilha mas, tendo sido ela tomada pelos avós dos bolchevistas, permanece só entre bocas de metrôs um espeto de coluna.
-Aquilo lá em cima é o gênio!
-De asas?
-Certamente.
Visitam depois o Louvre, a Torre de São Jacques e o Arco da Étoile que, segundo o chauffeur, já foi derrubado várias vezes pelos comunistas e reconstruído pelos capitalistas.
Ambos concordam que a França é eterna.
Pórtico (fragmento):
Nosso herói saiu pelo vento. Em cima fazia uma lua paulista. Passou os armazéns, o Hotel Allemby, um café turco. De repente a noite crenelada dos cruzados gritou quem vens lá!
A Torre Antônia velava sobre a lama dos quarteirões. Havia sombras de guardas ao lado dos degraus de um portão. Serafim aproximou-se. Eram dois soldados curdos. Perguntou-lhes pelo Santo Sepulcro.
-Não há nenhum Santo Sepulcro…
-Como?
-Nunca houve.
-E Cristo?
-Quem?
O outro esclareceu:
-Cristo nasceu na Bahia.
Fim de Serafim
Fatigado
Das minhas viagens pela terra
De camelo e táxi
Te procuro
Caminho de casa
Nas estrelas
Costas atmosféricas do Brasil
Costas sexuais
Para vos fornicar
Como um pai bigodudo de Portugal
Nos azuis do clima
Ao solem nostrum
Entre raios, tiros e jaboticabas.
MÁRIO DE ANDRADE
A meditação sobre o Tietê
(trecho inicial)
Água do meu Tietê,
Onde me queres levar?
— Rio que entras pela terra
E que me afastas do mar…
É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável
Da Ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e oleosa.
É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,
Soturnas sombras, enchem de noite tão vasta
O peito do rio, que é como se a noite fosse água,
Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões
As altas torres do meu coração exausto. De repente
O óleo das águas recolhe em cheio luzes trêmulas,
É um susto. E num momento o rio
Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas,
Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam
Agora, arranha-céus valentes donde saltam
Os bichos blau e os punidores gatos verdes,
Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas,
Luzes e glória. É a cidade… É a emaranhada forma
Humana corrupta da vida que muge e se aplaude.
E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra.
Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo,
Está negro. As águas oleosas e pesadas se aplacam
Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho
[ de morte.
É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado
É um rumor de germes insalubres pela noite insone e
[ humana.
Paulicéia: um dos exemplos de melhor realização da obra é Paisagem nº2
Escuridão dum meio-dia de invernia…
Marasmos… Estremeções… Brancos…
O céu é toda uma batalha convencional de confetti brancos;
e as onças pardas das montanhas no longe…
Oh! para além vivem as primaveras eternas!
As casas adormecidas
parecem teatrais gestos dum explorador do polo
que o gelo parou no frio.
Lá para as bandas do Ipiranga as oficinas tossem…
Todos os estiolados são muito brancos.
Os invernos de Paulicea são como enterros de virgem…
Italianinha, torna al tuo paese! (…)
Deus recortou a alma de Paulicéia
num cor de cinza sem odor…
Oh! Para além vivem as primaveras eternas!…
Mas os homens passam sonambulando…
E rodando num bando nefário,
vestidas de eletricidade e gasolina,
as doenças jocotam em redor… (…)
São Paulo é um palco de bailados russos.
Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os crimes
e também as apoteoses de ilusão…
III
Si o teu perfil é puríssimo, si os teu lábios
São crianças que se esvaecem no leite,
Si é pueril o teu olhar que não reflete por detrás,
Si te inclinas e a sombra caminha na direção do futuro:
Eu sei que tu sabes o que eu nem sei si tu sabes,
Em ti se resume a perversa e imaculada correria dos fatos,
És grande por demais para que sejas só felicidade!
És tudo o que eu aceito que me sejas
Só pra que o sono passe, e me acordares
Com a aurora incalculavelmente mansa do sorriso.
(Girassol da Madrugada)
Descobrimento
Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De sopetão senti um friúme por dentro,
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando para mim. Não vê que me lembrei lá no norte, meu Deus! muito longe de mim,
Na escuridão ativa da noite que caiu,
Um homem pálido, magro de cabelo escorrendo nos olhos
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu….
Ode ao Burguês
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
O burguês-burguês!
A digestão bem feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
É sempre um cauteloso pouco-a-pocuo!
Eu insulto as aristocracias cutelosas!
Os barões lampeões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos;
E gemem sangues de alguns milréis fracos
Para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
E tocam o Printemps com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
O êxtase fará sempre o Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tílburi!
Padaria Suíça! Morte viva ao Adriano!
“-Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
– Um colar… – Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares
Ódio aos relógios musculares! Morte a infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfacimentos as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!…
(Poesias Completas)
Rondó pra Você
De você, Rosa, eu não queria
Receber somente esse abraço
Tão devagar que você me dá,
Nem gozar somente esse beijo
Tão molhado que você me dá…
Eu não queria só porque
Por tudo quanto você me fala,
Já reparei que no seu peito
Soluça o coração bem feito
De você
Pois então eu imaginei
Que junto com esse corpo magro,
Moreninho que você me dá,
Com a boniteza a faceirice
A risada que você me dá
E me enrabicham como o quê,
Bem que eu podia possuir também
O que mora atrás do seu rosto, Rosa,
O pensamento, a alma, o desgosto
De você
(Clã do Jaboti)
VIII
Gosto de estar a teu lado,
Sem brilho.
Tua presença é uma carne de peixe,
De resistência mansa e um branco
Escoando azuis profundos.
Eu tenho liberdade em ti.
Anoiteço feito um bairro,
Sem brilho algum.
Estamos no interior duma asa
Que fechou.
(Poemas da Amiga)
Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.
Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.
Mulher gordaça, filó
De ouro por todos os poros,
Burra como uma porta:
Paciência…
Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta do pobre arromba:
Uma bomba.
(Lira Pulistana)
Eu Sou Trezentos…
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Oh espelhos, oh Pireneus! Oh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo…
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.
(Remate de Males)
Quando eu morrer
Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.
Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.
Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.
O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade…
Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade…
As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.
Poemas da amiga
Gosto de estar a teu lado,
Sem brilho.
Tua presença é uma carne de peixe,
De resistência mansa e de um branco
Ecoando azuis profundos.
Eu tenho liberdade em ti.
Anoiteço feito um bairro,
Sem brilho algum.
Estamos no interior duma asa
Que fechou.
AMAR, VERBO INTRANSITIVO DE MÁRIO DE ANDRADE (1927)
Enredo
Souza Costa (Felisberto…), homem burguês, bem posto na vida, contrata uma governanta alemã, de 35 anos, para a educação do filho (Carlos), principalmente, para a sua educação sexual.
NÃO ME AGRADARIA SER TOMADA POR AVENTUREIRA, SOU SÉRIA, E TENHO 35 ANOS, SENHOR. CERTAMENTE NÃO IREI SE SUA ESPOSA NÃO SOUBER O QUE VOU FAZER LÁ.
Elza é o nome da moça. Mas vai ficar conhecida e será chamada sempre pela palavra alemã Fräulein (= senhorita). Chegou à mansão de Souza Costa, numa terça-feira. (Ganharia algum dinheiro… Voltaria para a Alemanha… Se casaria com um moço “comprido, magro”, muito alvo, quase transparente”…)
A família era formada pelo pai, por D. Laura, o rapazinho Carlos e as meninas: Maria Luísa, com 12 anos; Laurita com 7 e Aldinha com 5. Havia também na casa um criado japonês: Tanaka. A criançada toda começou logo aprendendo alemão e chamando a governanta de Fräulein. Carlos não está muito para o estudo. Fräulein logo se ajeitou na família, uma família “imóvel, mas feliz”. Mas o papel principal da governanta é ensinar o “amor”.
É coisa que se ensine o amor? Creio que não. Ela crê que sim. E o rapazinho aprendeu logo as lições. “O caso evolucionava com rapidez”. “Agora? Vive na saia da Fräulein”. D. Laura percebe as intimidades do filho com a governanta. Souza Costa não lhe dissera nada sobre os trabalhos dela com relação ao filho. Fräulein vai embora? Fica? O marido convence a mulher da necessidade de preservar o filho das explorações e das doenças das mulheres da vida. Precisava ser educado sexualmente e eugenicamente. O tempo ia passando. “Carlos estava homem.” A governanta agora é a sua eficiente professora de sexo: teoria e, principalmente, prática. “Professora de amor… porém não nascera pra isso, sabia. As circunstâncias é que tinham feito dela a professora de amor, se adaptara…”. A narrativa se prolonga com uma ocasional viagem ao Rio: Maria Luísa esteve doente e o médico lhe recomendou outro clima.
No passeio à Tijuca, Fräulein se entrega à contemplação da natureza, com uma alma cheia de encantamentos… E de amor. A viagem de volta é um dos momentos mais vivos e interessantes da narrativa: as peripécias no trem da Central e o lado humorístico de Laurita lendo os nomes das estações, em cada parada. A mãe perguntou o nome de uma estação. E Laurita, silabando: “É… é Mi… Miquitório! Mamãe! É Miquitório!” Foi um desapontamento geral da família. E o pai falou: “- Não é Mictório não, minha filhinha… É Taubaté”. “Na volta do Rio recomeçaram os encontros noturnos, que bom!” Mas o curso de amor terminou. Fräulein tinha que ir embora. Para ensinar a outros alunos. “Cumpriu a missão dela, o que sabia ensinou”. Para despedi-la, Souza Costa cria um drama junto do filho: ele poderia ser obrigado a casar… Podia nascer um filho… Um filho! Fräulein vai embora. Segue para Santos. Ou para Campinas. Despedidas. Lá se vai a nossa Fräulein. Esta muito calma. E o idílio acaba aqui. O livro está acabando. Lá se foi Fräulein. Mais alguns trabalhos “profissionais” e poderia se aposentar… Com os oito contos e alguns sonhos… Casamento. “O moço magro, pálido.” E Carlos? Solitário, sem querer nada com a vida. Sair? Ir ao Teatro? Sai no meio da peça. Fazer o quê? Suicídio? A vida vai, volta, vai-e-vem. O mundo é assim mesmo. Há tantas mulheres pelas ruas de S. Paulo. Como Fräulein. A narrativa ainda se espicha um pouco com um flash. Fräulein já tem um novo aluno: Luís. Estão num corso de carnaval. Uma serpentina que ela atira bate em Carlos. Carlos olha e continua brincando com a holandesa. Carlos continua um machucador. O mundo é tal como é. A gente deve aceitar sem revolta. Carlos casará rico. Perfeitamente. Ela era mãe de amor. Estava até bonita. Mãe de amor! Mãe…
MACUNAÍMA DE MÁRIO DE ANDRADE (1928)
Cap.I – MACUNAÍMA
Relata o nascimento do herói, “preto retinto, filho do medo na noite”, nascido de uma índia tapanhumas no meio da selva, Macunaíma aprende tardiamente a falar, mas, quando o faz (com 6 anos ao lhe darem água no chocoalho), tem pronto o seu bordão: “Ai, que preguiça!…”
Tinha dois irmãos, Jiguê e Maanape, um velhinho feiticeiro. A diversão de Macunaíma era decepar cabeças de saúva e tomar banho nu junto com a família e as cunhãs, cujas partes íntimas agradavam muito o herói; enquanto “guspia”na cara dos machos.
À noite, de cima de sua rede onde dormia, mijava quente na velha mãe, sonhando imoralidades e dando coices no ar.
A companheira de Jiguê, Sofará, ajudava a cuidar de Macunaíma, levando-o ao mato para passear, mas chegando lá ele se transformava em um lindo príncipe e “brincava” muito com ela. Quando Jiguê chegava à maloca e encontrava o serviço por fazer, catava os carrapatos dela e dava-lhe uma grande surra, a qual recebia calada.
Macunaíma conseguiu capturar uma anta quando estava no mato com Sofará. Neste dia a cunhã se transformou em uma onça suçuarana e “brincou” violentamente com o herói, sendo assistidos por Jiguê.
Este, deu uma surra no herói , levando Sofará de volta ao pai.
“O berreiro foi tão grande que encurtou o tamanho da noite e os pássaros caíram de susto e transformaram em pedras.”
Cap.II – MAIORIDADE
Jiguê arranja uma companheira nova, Iriqui, que trazia escondido um ratão na maçaroca dos cabelos.
Falta o que comer na maloca e para se divertir às custas dos manos, Macunaíma mente que tem timbó no rio, assim eles passam o dia todo procurando timbó, enquanto o herói afirma que timbó já tinha sido gente um dia…
Faz uma mágica para a mãe levando-a para o outro lado do rio, onde havia fartura de caça e frutas, mas ao perceber que a mãe pretende levar alimentos para os outros, transporta-a de volta sem nada. Com raiva, a velha leva-o para o Cafundó do Judas, abandonando-o onde não poderia crescer nunca mais; lá encontrou Currupira, de cuja perna cortou um pedaço e deu para Macunaíma comer, intencionando devorá-lo depois. Macunaíma foge, enquanto Currupira chama pelo pedaço de sua perna que lhe responde: “O que foi?”. Assim, ele vomita o pedaço de carne e some.
Uma cotia derrama-lhe uma poção mágica que o faz crescer, contudo assustado desvia e a cabeça do herói não é atingida pela magia, ficando com cara de piá.
Chegando à maloca, fica sozinho com Iriqui e “brinca” com ela, tornando-se seu companheiro. Em uma caçada, persegue uma viada matando-a, ao chegar perto desmaia: a viada era sua velha mãe!
“Então Macunaíma deu a mão para Iriqui, Iriqui deu a mão pra Maanape, Maanape deu a mão pra Jiguê e os quatro partiram por esse mundo”
Cap.III – CI, A MÃE DO MATO
Um dia encontrou Ci dormindo no mato e quis “brincar”com ela, porém a cunhã defendeu-se violentamente, os manos precisaram acudi-lo, pois Ci o estava quase matando. Depois de uma paulada na cabeça, ela desmaiou e o herói pôde “brincar” com a mãe do mato. Agora virara Imperador do Mato Virgem, por isso muitas jandaias, araras, tuins, coricas, periquitos etc., vieram saudar Macunaíma.
Passara agora a viver com Ci, por quem se apaixonara depois de com ela “brincar” em uma rede trançada por ela com os próprios cabelos. Depois de seis meses tiveram um filho que logo morreu ao mamar no peito da mãe, pois este estava contaminado pelo veneno da Cobra Preta.
Neste dia, Ci entrega a Macunaíma uma muiraquitã e sobe ao céu, transformando-se Na Beta do Centauro e no túmulo do filho nasceu um pé de guaraná.
“Com as frutinhas piladas dessa planta é que a gente cura muita doença e se refresca durante o calorão de Vei, a Sol”.
Cap. IV – BOIÚNA LUNA
Fez da muiraquitã um tembetá pendurado no beiço inferior e padeçou muita saudade de Ci. Assim, choroso, seguiu viagem com os manos, sempre acompanhado das jandaias, araras etc.
Neste capítulo, o narrador relata a lenda do surgimento da Lua. Esta era a boiuna Capei que deveria possuir uma virgem de nome Naipi, porém Naipi entregara sua virgindade ao moço Titçatê. Capei transformou Naipi em uma cachoeira chorosa e o moço em uma planta de flores roxas. Macunaíma ouviu a história da Cascata e disse-lhe que tinha vontade de matar Capei por isso. Capei saiu de baixo de Naipi, onde morava vigiando o sexo da moça e partiu para se vingar do herói. Macunaíma arrancou-lhe a cabeça e este membro de Capei tornou-se escravo dele sempre o perseguindo, por fim resolveu subir ao céu e lá ficou morando para sempre.
Ele perde o talismã nessa correria e o passarinho uirapuru conta-lhe que a pedra fora achada por um mariscador e vendida pra um regatão peruano chamado Venceslau Pietro Pietra, Piaimã, o gigante comedor de gente que andava com os calcanhares para frente, enriquecera e agora morava na cidade de São Paulo.
“Então Macunaíma contou o paradeiro da muiraquitã e disse pros manos que estava disposto a ir em SP procurar esse tal Venceslau P. P. e retomar o tembetá roubado.”
Cap.V – PIAIMÃ
Macunaíma deixa a consciência na ilha de Marapatá, sobre um pé de caruru e ruma pra SP junto com seus manos através do rio Araguaia.
Sem perceber tomou banho em uma água encantada e ficou branco, louro e de olhos azuizinhos, os irmãos também entraram na água, porém já suja do negrume do herói, Jiguê ficou vermelho e Maanape só molhou as palmas das mãos que ficaram mais claras. E seguiram levando uma parte do tesouro da icamiabas.
Chegando em SP a comitiva de pássaros se despedem dele. Olhava pro céu, sentia saudade de Ci, mas conheceu a moças brancas (Mani! Mani! filhinhas da mandioca…”) com quem “brincou” por quatrocentos bagarotes.
Tudo para ele era estranho na cidade e foi aprendendo o nome das coisas ( bondes, automóveis, relógio, faróis, rádios, telefones, postes chaminés) as quais chamava de Máquina. Concluiu então que “os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens.”
Macunaíma saiu com Maanape em busca de Piaimã e da muiraquitã, mas o herói foi pego pelo gigante que o queria devorar. Maanape, ajudado por uma formiga sarará e um carrapato, conseguiu trazer o herói de volta à pensão e ressuscitou com guaraná. Pensou em arranjar uma arma para matar o gigante e foi pedir aos ingleses.
“Agora dou minha garrucha pra você e quando alguém bulir comigo você atira. Então virou Jiguê na máquina telefone, ligou pro gigante e xingou a mãe dele”.
Cap.VI – A FRANCESA E O GIGANTE
Tentando enganar o gigante, virou Jiguê em telefone e disse a Venceslau que uma francesa iria visitá-lo. Transformado em uma francesa linda foi para tentar negociar a muiraquitã, mas o gigante queria possuí-lo antes de entregar a pedra.
Piaimã descobre que o herói está tentando enganá-lo e tenta pegá-lo; Macunaíma corre muito, atravessando vários Estados do Brasil e só se livra do gigante quando este tenta tirá-lo de um buraco e pega no “sim-sinhô” do herói arremessando-o longe. Descobriu que Venceslau era um colecionador célebre e ele não, ficou contrariado e resolveu que colecionaria palavrões.
“Ai! Que preguiça!…”
Cap. VII – MACUMBA
Para se livrar de Piaimã, ele resolve ir ao RJ, no terreiro da tia Ciata, pedir ajuda pro Exu diabo. O herói experimentou a cachaça e soltava gargalhadas escandalosas, por isso todos pensavam que o santo abaixaria nele naquela noite. De repente uma polaca pulou no meio da roda, era Exu que havia possuído a moça. Macunaíma ficou excitado de vê-la caída daquele jeito e correu brincar com ela no meio da roda.
Pediu à entidade que judiasse muito de Piaimã e, por meio do corpo da polaca, Macunaíma ia fazendo as maldades para o gigante que quase morria de tanto sofrer…
“E os macumbeiros, Macunaíma, Jaime Ovalle, Dodô, Manu Bandeira, Blaise Cendrars, Ascenso Ferreira, Raul Bopp, Antônio Bento, todos esses macumbeiros saíram na madrugada”.
Cap.VIII – VEI, A SOL
Seguindo, Macunaíma topou com a árvore Volomã, cujos galhos estavam carregadinhos de variadas frutas; pediu uma e Volomã negou. Então o herói pronunciou algumas palavras mágicas e todas foram para o chão. Irada, Volomã atirou-o pelos pés em uma ilha deserta. Demorou tanto a cair que dormiu durante o percurso. Lá um urubu fez necessidade em sua cabeça e, po isso, ninguém se dispunha a trazê-lo de volta, pois estava fedendo muito.
Vei, a Sol deu-lhe carona em sua jangada juntamente com suas três filhas, pois pretendia torná-lo seu genro. Mas para isso disse-lhe que não poderia brincar com nenhuma outra cunhã. Nem bem saíram para iluminar o dia, Macunaíma encontrou uma portuguesa com quem brincou demoradamente. Quando chegaram encontraram o herói dormindo com ela na jangada. Vei se zangou e não consentiu que o herói se casasse com nenhuma. À noite uma assombração comeu a portuguesa e o herói voltou para a pensão.
“Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são!”
Cap. IX – CARTA PRAS ICAMIABAS
Com um vocabulário erudito, escreve uma carta pras icamiabas, tentando relatar-lhes as aventuras pelas quais estavam passando ele e seu dois irmãos. Explica-lhes como os paulistanos as chamam, por amazonas, e como estes nunca ouviram falar da muiraquitã tão conhecida e respeitada entre as icamiabas.
Sobre o dinheiro ,chama-o de “o curriculum vitae da civilização”, para explicar que as mulheres cobram para brincar. Prolonga-se na tentativa de descrever o comportamento das mulheres paulistanas: como se vestem, como se casam. Fala dos prostíbulos, da política, vida pública em geral e, por fim, descreve a cidade de São Paulo sempre com um linguajar prolixo.
“Vazada num vernáculo pernosticamente castiço, com evidente intenção satírica, visando os puristas da belle époque e todos aqueles mais afeitos à dicção portuguesa.”( Massud de Moisés – História da Literatura Brasileira).
“Ora, sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra.”
Cap.X – PAUÍ-PÓDOLE
Enquanto aguardava uma chance de recuperar a muiraquitã, Macunaíma passeava pela cidade. Foi assim que encontrou uma cunhã vendendo flores e quando o herói passou por ela, esta he colocou uma flor na botoeira da camisa, orifício que ele chamou de “puíto”, segundo o narrador, um palavrão muito feio. Puíto pegou e virou moda.
Depois de uma semana, resolveu ir ao parque ver os fogos. No caminho encontrou Fraülen ( personagem do livro Amar, verbo intransitivo) e foi com ela.
Observando um mulato explicar sobre o dia do Cruzeiro, Macunaíma resolve desmenti-lo e contar sua versão: Pauí-Pódole era o pai do Mutum, um pássaro que fora perseguido por um feiticeiro que tentou matá-lo. Por isso Pauí resolveu morar no céu e pediu para que seu compadre vagalume alumiasse o caminho dele. Vários vagalumes o acompanharam e po isso esse caminho de estrelas pode ser explicado.
Cap. XI – A VELHA CEIUCI
Sempre mentindo, Macunaíma convidou os manos pra caçar. Pegou dois ratos chamuscados no fogo, comeu-os e disse aos vizinhos que tinha matado dois viados catingueiros.
Depois de desmentido pelos manos, ficou chateado e começou a ter lembranças do Mato e de Ci. Então ficaram juntos lembrando-se do passado.
O herói fumou fava de paricá para ter sonhos gostosos. No outro dia causa uma grande confusão quando convence os manos a procurarem rasto de tapir na frente da bolsa de mercadorias, quase foi linchado e preso. Um dia resolveu pescar no igarapé Tietê e encontrou a velha Ceiuci, esposa de Piaimã. Ela capturou o herói e levou-o para casa. A filha mais nova da velha gostou de Macunaíma , “brincou” com ele e deixou-o fugir. A velha transformou a filha em um cometa e correu o Brasil inteiro atrás do herói. Ele pegou carona com um tuiuiu e voltou para a pensão.
“A filha expulsa corre no céu, batendo perna de déu em déu.”
Cap.XII – TEQUETEQUE, CUPINZÃO E A INJUSTIÇA DOS HOMENS.
Piaimã viaja à Europa para descansar da sova e Macunaíma fica muito frustrado. O mano Jiguê tem a idéia de irem atrás do gigante, porém Maanape conclui que o melhor é que Macunaíma se finja de pianista e vá sozinho por conta do governo. Macunaíma prefere se passar por pintor, porém não consegue nada.
Além disso, agora tinha perdido quarenta contos ao comprar de um tequeteque (mascate) um gambá que, supostamente, soltava moedas de prata quando fazia necessidades.
Então resolveu que não ia à Europa e decidiu procurar uma panela com dinheiro enterrado, não achando convida os manos para jogarem no bicho.
Numa praça, quando refletia sobre a injustiça dos homens, viu um tico-tico e um chupim, este chorava atrás do outro pedindo comida e o pássaro tentava sustentá-lo achando que fosse seu filhote, então Macunaíma matou o tico-tico para acabar com a injustiça. Mais adiante encontrou um macaco comendo coquinhos, o bicho disse ao herói que estava comendo seus próprios toaliquiçus (bolsa escrotal), deu um pouco para o herói que gostou muito e resolveu comer os dele também. Pegou um paralelepípedo e esmigalhou seus “toaliquiçus”, morrendo de dor.
Um advogado encontra Macunaíma morto e leva-o para a pensão, chegando lá, Maanape ressuscita o mano com guaraná; acorda, pede uma centena a Maanape e joga no bicho…
“Maanape era feiticeiro”.
Cap.XIII – A PIOLHENTA DO JIGUÊ
Jiguê arrumou uma outra companheira de nome Susi, a qual em pouco tempo já estava namorando e “brincando” com Macunaíma. Quando ia à feira comprar macacheira, levava o herói junto e com ele brincava toda a tarde. Jiguê, desconfiado, deixa a companheira em casa e passa a fazer a feira sozinho, enquanto Susi fica em casa catando os piolhos da cabeleira vermelha que eram muitos. Desconsolado coma traição de Susi dentro de sua maloca, manda-a embora e ela sobe ao céu, transformada em uma estrela que pula.
Cap.XIV – MUIRAQUITÃ
Fica sabendo por meio dos jornais que Piaimã voltou da Europa. Neste capítulo, o narrador explica por que existe o sono e o homem não pode dormir em pé.
Andando, o herói vê um casal brincando na beira da lagoa e aproxima-se pedindo um cigarro, o moço diz que não tem e Macunaíma resolve fumar o seu de palha que traz escondido. Esperando dar a hora de ir à casa do gigante ele conta uma história ao casal, explicando que o automóvel, antigamente, era uma Onça parda que perseguida por uma tigre preta resolveu colocar quatro rodas nos pés, tomar óleo de mamona, comer um motor morder dois vagalumes…Assim, transformando-se na máquina automóvel.
“Dizem que mais tarde a onça pariu uma ninhada enorme. Teve filhos e filhas. Por isso que a gente fala “um forde” e “uma chevrolé”.
Depois da prosa, o gigante chegou . Observando os três parados perto de sua casa, convidou-os para entrar. Perguntou ao moço se queria balançar e o moço subiu no balanço do gigante, porém a velha Ceiuci estava preparando uma macarronada e esperava o sangue do moço para engrossar o caldo. Piaimã deu-lhe um empurrão e jogou-o na macarronada fervendo Agora queria pegar o herói, porém este se recusava a balançar, fez manha e convenceu o gigante a balançar primeiro. A velha preparou o panelão sem saber quem viria engrossar o caldo. De repente, Macunaíma deu um solavanco no gigante e empurrou-o dentro da macarronada da velha Ceiuci.
Então Macunaíma matou o gigante comedor de gente e recuperou sua muiraquitã.
“Num esforço gigantesco inda se ergueu do fundo do tacho. Afastou os macarrões que corriam na cara dele, revirou os olhos pro alto, lambeu a bigodeira:
– Falta queijo! Exclamou…
E faleceu.”
Cap. XV – A PACUERA DO OIBÊ
Recuperado o talismã, resolvem voltar para a selva. Na despedida repete pela última vez a sua definição sobre o país: “Pouca saúde e muita saúva,os males do Brasil são…”
Levou com ele um revólver e um relógio que pendurou nas orelhas, um galo e uma galinha Legorne e a muiraquitã pendurada no beiço.
Na volta, pelo Araguaia, pegou a violinha e cantou cantigas tristes e sem sentido, enquanto ia sendo acompanhado pela comitiva de pássaros que o protegia de Sol. Lembrava-se das donas de pele alvinha e sentia saudades de SP. Perto do mato pegou Iriqui e procurou um lugar para passar a noite.
Em um rancho, encontrou o monstro Oibê que estava fazendo uma pacuera. Disse que estava com fome e o monstro deu-lhe cará com farinha, água e arrumou um lugar para o herói dormir. Macunaíma roubou a pacuera de Oibê e comeu-a .Perseguido pelo monstro, vomita tudo para se livrar.
Na correria encontrou uma princesa, brinca com ela e abandona Iriqui que fica desconsolada, por isso resolve subir ao céu. “E o Setestrelo”.
Cap. XVI – URARICOERA
Foram chegando perto do Uraricoera e Macunaíma já começa a reconhecer o lugar, porém muita coisa havia mudado e o herói chorou. No outro dia, enquanto todos se ocupavam com algum serviço, Macunaíma deu uma chegadinha até a boca do Rio Negro para buscar a consciência deixada na ilha de Marapatá; não achando, pegou a de um hispano-americano.
Jiguê encontra uma cabaça encantada que pertence ao feiticeiro Tzaló que tem ma perna só e, com ela, consegue pescar muitos peixes, mas Macunaíma, roubando a cabaça encantada perde-a no rio e Jiguê fica furioso e deixa todos com fome. Para se vingar do mano, Macunaíma transforma uma presa de sucuri em anzol e pede para que espete a mão de Jiguê. Machucado com o anzol, Jiguê tenta curar a ferida, mas esta transforma-se em uma lepra que devora todo o corpo de Jiguê, deixando apenas sua sombra. A princesa ficou com raiva do herói porque ultimamente andava brincando com Jiguê e ordenou que a sombra envenenada destruísse Macunaíma; assim a sombra virou uma bananeira carregadinha e o herói, faminto, devorou as bananas, adquirindo a lepra. Estando moribundo resolveu passar a doença para sete povos. Veio a Saúde e livrou Macunaíma da morte.
A sombra voltou e engoliu a princesa e o mano Maanape, mas não conseguiu pegar o herói.
Correndo dela, Macunaíma passou por vários lugares do Brasil, até conseguir se livrar. Enfim, a sombra econtrou um boi, subiu nas costas dele e não deixava que o bicho comesse nada, assim o boi morreu e muitos urubus vieram fazendo a festa ( aqui o narrador explica a origem do bumba-meu-boi).
“A sombra teve raiva de estarem comendo o boi dela e pulou no ombro do urubu-ruxama. O pai do urubu ficou muito satisfeito e gritou:
– Achei companhia pra minha cabeça, gente!
E voou pra altura. Desde esse dia o urubu ruxama que é o Pai do Urubu possui duas cabeças.
A sombra leprosa é a cabeça da esquerda.”
Cap. XII – URSA MAIOR
Sozinho agora e com muita preguiça, Macunaíma amarra a rede em dois cajueiros perto de uma pedra com dinheiro enterrado em baixo. “Que solidão!”
O único que lhe fez companhia foi um aruaí (espécie de arara) muito falador, que aprendia, repetindo, todos os casos contados pelo herói, desde sua infância. E todos os dias a ave repetia o caso da véspera e Macunaíma punha-se a contar mais um.
Depois de muitos dias na rede, comendo caju e contando casos ao papagaio, a Sol veio fazer cosquinhas no corpo do herói e a vontade de “brincar” reapareceu forte em Macunaíma, então resolveu tomar um banho frio no vale de Lágrimas para a vontade passar. Ao olhar para o fundo das águas viu uma cunhã lindíssima, era Uiara que, mandada pela Sol para atrair o herói e matá-lo, vinha dançando e piscando até que Macunaíma pulou no fundo das águas. Atacado pelas piranhas, perdeu a perna deireita, os dedões, os “cocos da Bahia”, o nariz, as orelhas e o beiço com a muiraquitã. Depois de muito procurar, encontrou tudo e colou de volta no lugar, menos a perna direita e a muiraquitã, pois foram engolidos pelo monstro Ururau. Sem um sentido agora para continuar vivendo, resolveu ser brilho inútil lá no céu, deixando escrito numa laje: “NÃO NASCI PARA SER PEDRA”. No céu, Pauí-Pódole virou Macunaíma na constelação da Ursa Maior.
EPÍLOGO
Uma feita um homem foi lá.
Então o homem descobriu na ramaria um papagaio verde de bico dourado espiando pra ele. O papagaio veio pousar na cabeça do homem e os dois se acompanheiraram. Então o pássaro principiou falando numa fala mansa, muito nova, muito! Que era canto e que era cachiri com mel-de-pau,…
Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói de nossa gente.”
MANUEL BANDEIRA
João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
Doçura de, no estio recente
Ver a manhã toucar-se de flores
E o rio
mole
queixoso
Deslizar, lambendo areias e verduras;
Doçura de ouvir as aves
Em desafio de amores
cantos
risadas
Na ramagem do pomar sombrio.
Amanhã é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.
Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
O filho tem mais precisão.
O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero.
E em verdade estou morto ali.
Teresa
Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você
E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde
Se ele chorar
Se ele se ajoelhar
Se ele se rasgar todo
Não acredita não Teresa
É lágrima de cinema
É tapeação
Mentira
Cai fora.
O bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Pneumotórax
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
– Diga trinta e três.
– Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
– Respire.
– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
Irene
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor
Imagino Irene entrando no céu:
– Com licença, meu branco.
E São Pedro, bonachão:
– Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
Porquinho-da-Índia
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele prá sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…
– O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.
Último poema
Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos
[intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes
[mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
Não Sei Dançar
Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.
Perdi a saúde também.
E por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.
Poema do Beco
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
– O que eu vejo é o beco.
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca da Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me e Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostituas bonitas
Para a gente namorar
Vou-me embora pra Pasárgada
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
Madrigal Melancólico
O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.
O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
-Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.
O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento.
Graça que perturba e que satisfaz.
O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.
O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti – lastima-me e consola-me!
O que eu adora em ti, é a vida.
Profundamente
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
– Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
– Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Belo Belo
Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.
Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo – que foi? passou – de tantas estrelas cadentes.
A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.
O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.
Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.
Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.
As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.
Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.
– Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.
Poema Erótico
Teu corpo claro e perfeito,
– Teu corpo de maravilha
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha…
Teu corpo é tudo o que cheira…
Rosa… flor de laranjeira…
Teu corpo branco e macio
É como um véu de noivado…
Teu corpo é pomo doirado…
Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume…
Teu corpo é a brasa do lume…
Teu corpo é chama e flameja
Como à tarde os horizontes…
É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Que em cantigas se derrama…
Volúpia de água e da chama…
A todo momento o vejo…
Teu corpo… a única ilha
No oceano do meu desejo…
Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira…
Rosa, flor de laranjeira…
Andorinha
Andorinha lá fora está dizendo:
– “Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…
A Estrela da Manhã
Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã
Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda a parte
Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa? Eu quero a estrela da manhã
Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário
Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e com os troianos
Com o padre e com o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois comigo
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás
Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
eu quero a estrela da manhã
A Morte Absoluta
Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão – felizes! – num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante…
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: “Quem foi?…”
Morrer mais completamente ainda,
– Sem deixar sequer esse nome.
Os Sapos
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
– “Meu pai foi à guerra!”
– “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”.
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: – “Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.
O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
Vai por cinquüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.
Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas…”
Urra o sapo-boi:
– “Meu pai foi rei!”- “Foi!”
– “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”.
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
– A grande arte é como
Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo”.
Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
– “Sei!” – “Não sabe!” – “Sabe!”.
Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Veste a sombra imensa;
Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio…
O Menino Doente
O menino dorme.
Para que o menino
Durma sossegado,
Sentada ao seu lado
A mãezinha canta:
– “Dodói, vai-te embora!
“Deixa o meu filhinho,
“Dorme… dorme… meu..
Morta de fadiga,
Ela adormeceu.
Então, no ombro dela,
Um vulto de santa,
Na mesma cantiga,
Na mesma voz dela,
Se debruça e canta:
– “Dorme, meu amor.
“Dorme, meu benzinho… ”
E o menino dorme.
Desencanto
Eu faço versos como quem chora
De desalento , de desencanto
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto
Meu verso é sangue , volúpia ardente
Tristeza esparsa , remorso vão
Dói-me nas veias amargo e quente
Cai gota à gota do coração.
E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca
Eu faço versos como quem morre.
Qualquer forma de amor vale a pena!!
Qualquer forma de amor vale amar!
Noite Morta
Noite morta.
Junto ao poste de iluminação
Os sapos engolem mosquitos.
Ninguém passa na estrada.
Nem um bêbado.
No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras.
Sombras de todos os que passaram.
Os que ainda vivem e os que já morreram.
O córrego chora.
A voz da noite…
(Não desta noite, mas de outra maior.)
Neologismo
Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo
Teadoro, Teodora.
O Rio
Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.
RAUL BOPP
COBRA NORATO
Cobra Norato vem à luz em 1931, em plena efervescência do modernismo. Raul Bopp é um dos nomes fundamentais da primeira geração do Modernismo. Murilo Mendes afirmou que “Cobra Norato é o documento capital dessa ruptura de um poeta que, tendo viajado tanto e conhecido culturas tão diferentes, permaneceu tipicamente brasileiro e levou a termo, em pleno século XX, o que os outros descobridores do Brasil tinham tentado em vão desde o início do século XVII. Na linguagem, Bopp, forjador de um léxico saboroso, fundiu sabiamente vozes indígenas e africanas, alterando a sintaxe, sem cair nos exageros e preciosismos de Mário de Andrade.
Ao lado de I-Juca Pirama de Gonçalves Dias, é tido como o grande poema épico brasileiro. Há que se considerar que quase um século separa os dois poemas. A Gonçalves Dias cabe a primazia de seu pioneirismo, poeta que abriu as portas da fronteira universal e deu passagem para a poesia brasileira. Raul Bopp vai, tal qual I-Juca Pirama, pisar chão e beber água da Amazônia, mas pisa esse chão, amassa o mato e bebe da mesma água de uma forma totalmente diferente. Não só mergulha na mitologia da terra como cria a mitologia na sua própria linguagem. O poema Cobra Norato é uma alegoria do princípio ao fim, onde a beleza mitológica da Amazônia é desvendada em toda sua pujança.
Resumo Cobra Norato
No ventre da noite, o poeta estrangula a Cobra Norato e enfia-se em sua pele elástica para sair dos confins da floresta amazônica em direção a Belém do Pará, em busca da filha da Rainha Luzia, com quem ele quer se casar.
O primeiro passo da caminhada é apagar os olhos, escorregar no sono e entrar na floresta cifrada. Sob a sombra fechada das árvores, entre sapos beiçudos, charco, lama, atoleiros provocados pelas águas dos rios, Norato avança e cumpre as missões impostas pelo mascarão que encontra no meio do caminho: passar por sete portas, ver sete mulheres brancas de ventres despovoados, guardadas por um jacaré; entregar a sombra para o Bicho do Fundo; fazer mirongas na lua nova; beber três gotas de sangue.
Norato cumpre as provas, mas não encontra a moça. Avança sozinho pela selva insone. O entusiasmo inicial cede a um certo desalento: ‘Onde irei eu que já estou como sangue doendo das mirongas da filha da rainha Luzia?’
A região torna-se lúgubre. É a floresta de hálito podre, de raízes desdentadas saltando do lodo. Na Escola das Árvores, uma árvore velha enfileira impiedosa as jovens árvores condenadas a produzir as folhas que cobrem a floresta. ‘Ai, ai, ai,’ gemem elas, ‘somos escravas do rio’.
Cobra Norato alcança o fundo da floresta, onde a terra é fabricada e as árvores passam a noite tecendo folhas em segredo. Está perdido em um escuro labirinto de árvores. A atmosfera pesada prenuncia tempestade. Pernaltas movem-se devagar, miritis abrem os grandes leques vagarosos, sapos coaxam com vigor. Desaba a chuva violenta: o vento saqueia as vegetação, nuvens negras se amontoam, lagoas arrebentam, árvores se abraçam.
Norato atola-se em um útero de lama, de onde sai graças à ajuda do tatu que se transforma também em companheiro de viagem. Vem um período de descanso e também de tristeza. Onde afinal andará a filha da rainha Luzia? O tatu propõe que partam para o lago Onça-poiema. Cobra Norato refresca-se nas águas do rio, comunga com os animais que por ali pastam. Quando partem novamente para o interior abafado da floresta, a noite já está se fechando.
O tatu avisa: começa naquele dia a maré grande. Os dois rumam, pelo mangue, paras as bandas do Bailique. Querem ver chegar a pororoca. Quando a lua cheia aponta, vem a onda inchada, rolando em vagalhões. Na força da enchente, eles navegam para uma polpa de mato onde Norato descansa e cisma: ‘o que é que haverá lá atrás das estrelas?’ Mas a fome aperta e dois vão para o patirum roubar tapioca.
Na casa das farinhadas grandes, as mulheres trabalham nos ralos mastigando os cachimbos. Joaninha Vintém conta o causo do boto que a surpreendeu enquanto lavava roupa. Vendo a animação da festa, Norato e o tatu viram gente. Cantam, dançam os chorados de viola, bebem cachaça. Na hora de partir, Joaninha Vintém quer ir junto, mas Norato não aceita. Pegam o corpo que ficou lá fora e continuam viagem.
Mais adiante, uma pajelança. A onça curuana entra no corpo do pajé, que examina os doentes de sezão, de inchado no ventre, de espinhela caída. Faz benzedura de destorcer quebranto, fuma, defuma, até tontear e cair. No meio da floresta, o som longínquo de um trem Maria-fumaça acorda o mato.
Ao longe, flutuando no rio, Norato vê um navio com casco de prata e as velas embojadas de vento. Navio não, corrige o tatu. É a Cobra Grande. Quando começa a lua cheia, ela aparece para buscar moça virgem. Enquanto a visagem vai se sumindo paras bandas de Macapá, Norato resolve: quer ver o casamento da Boiúna.
A caminho das bodas, Norato pede ao vento que o deixe passar, encontra-se com o saci e com o pajé-pato que lhe arreda o mato em troca de cachaça. O herói e o tatu vaõ com força, nem se escondem para ver as moças tomarem banho na ponta do Escorrega. O tatu está aflito, apressado, mas Cobra Norato avisa: ‘Devagar que chão duro dói’.
Na casa da Boiuna, um cururu se posta de sentinela. Norato esgueira-se pelos fundos da grota e avista a noiva, que não é ninguém menos que filha da rainha Luzia. Mas Cobra Grande acorda e começa a perseguição sem fim. Norato pede a tamaquaré, seu cunhado, que corra imitando seu rastro e entregue o seu pixé na casa do pajé-pato. Em cima da hora! Cobra Grande passa rasgando caminho. Chega à morada do pajé que lhe ensina o caminho errado: ‘Cobra Norato foi pra Belém se casar’. E lá se vai a Boiuna direto para Belém. Entra no cano da Sé e fica com cabeça enfiada debaixo dos pés de Nossa Senhora.
Cobra Norato volta para o Sem-fim, para as terras altas onde a serra se amontoa. Leva consigo a noiva, para estar com ela numa casa de porta azul piquininha pintada a lápis de cor. É lá que ele espera pela gente do Caxiri Grande, por Joaninha Vintém, pelo pajé-pato, por Augusto Meyer e Tarsila, por todo povo de Belém, de Porto Alegre e de São Paulo para a festa de casamento que há de durar sete luas e sete sóis.
MENOTTI DEL PICCHIA
A Inauguração
A convite da História Universal
Que havia marcado a festa para 21 de abril,
O Almirante Pedro Álvares Cabral
Veio com u7ma frota de luzidas caravelas,
Num séqüito naval de mastros e de velas,
De estandartes e de cruzes,
De sotainas, albardas, couraças e arcabuzes
Inaugurar a futura República
Dos Estados Unidos do Brasil.
A terra se enfeitara das mais raras maravilhas:
Pássaros, parasitas, caciques e serpentes,
Urros e pios, gritos e cânticos dolentes
E o mar de azulejo
Palpitava de pirogas e de quilhas.
Pelas picadas da floresta
Foram chegando as delegações da terra:
Generais carijós com tangas e miçangas,
Coronéis botocudos com escudos,
Tocantins de xavantes, guaicurus e guararapes.
Das curvas bruscas dos rios
Em igarapés, tangendo borés surgiram pajés
Bêbedos de sangue tapuia,
Trazendo ao almirante português
Alvíssaras das tabas tabajaras…
E Pedro Álvares Cabral
Para inaugurar a pátria de Washington Luís
Fincou na terra uma cruz.
E, de noite, o estelário queimou fogos de artifício
[no céu do Equador,
E os marinheiros trouxeram de bordo as guitarras
[para que dessem à luz
A primeira saudade brasileira.
(República dos Estados Unidos do Brasil)
CASSIANO RICARDO
Relâmpago
A onça pintada saltou tronco acima que nem um relâmpago
de rabo comprido e cabeça amarela:
Zás!
Mas uma flecha ainda mais rápida que o relâmpago fez
rolar ali mesmo
Aquele matinal gatão elétrico e bigodudo
Que ficou estendido no chão feito um fruto de cor
que tivesse caído de uma árvore!
Papagaio Gaio
Papagaio insensato,
que te fêz assim?
Que não sabes falar
brasileiro
e já sabes latim?
Papagaio insensato,
ave agreste, do mato,
que diabo em ti existe,
verde-gaio,
que nunca estás triste?
Papagaio do mato,
se nunca estás triste,
quem foi que te ensinou,
por maldade,
a palavra saudade?
Papagaio triste,
papagaio gaio,
quem te fêz tão triste
e tão gaio,
triste mas verde-gaio?
Papagaio gaio,
quem te ensinou,
em mais
do mato, a repetir,
papagaio,
tanto nome feio?
Gaio papagaio,
gaio, gaio, gaio,
que repetes tudo…
Antes fosses
um pássaro mundo.
Papagaio do mato,
se nunca estás triste,
quem foi que te ensinou,
por maldade,
a palavra saudade?
Papagaio gaio.
Gaio, gaio, gaio.
Os nomes dados a terra descoberta
Por se tratar de uma ilha deram-lhe o nome
de ilha de Vera-Cruz.
Ilha cheia de graça
Ilha cheia de pássaros
Ilha cheia de luz.
Ilha verde onde havia
mulheres morenas e nuas
anhangás a sonhar com histórias de luas
e cantos bárbaros de pajés em poracés batendo os pés.
Depois mudaram-lhe o nome
pra terra de Santa Cruz.
Terra cheia de graça
Terra cheia de pássaros
Terra cheia de luz.
A grande terra girassol onde havia guerreiros de tanga e
onças ruivas deitadas à sombra das árvores
mosqueadas de sol
Mas como houvesse em abundância,
certa madeira cor de sangue, cor de brasa
e como o fogo da manhã selvagem
fosse um brasido no carvão noturno da paisagem,
e como a Terra fosse de árvores vermelhas
e se houvesse mostrado assaz gentil,
deram-lhe o nome de Brasil.
Brasil cheio de graça
Brasil cheio de pássaros
Brasil cheio de luz.
Desejo
As coisas que não conseguem morrer
Só por isso são chamadas eternas.
As estrelas, dolorosas lanternas
Que não sabem o que é deixar de ser.
Ó força incognoscível que governas
O meu querer, como o meu não-querer.
Quisera estar entre as simples luzernas
Que morrem no primeiro entardecer.
Ser deus — e não as coisas mais ditosas
Quanto mais breves, como são as rosas
É não sonhar, é nada mais obter.
Ó alegria dourada de o não ser
Entre as coisas que são, e as nebulosas,
Que não conseguiu dormir nem morrer.
Canção para poder viver
Dou-lhe tudo do que como,
e ela me exige o último gomo.
Dou-lhe a roupa com que me visto
e ela me interroga: só isto?
Se ela se fere num espinho,
O meu sangue é que é o seu vinho.
Se ela tem sede eu é que choro,
no deserto, para lhe dar água:
E ela mata a sua sede,
já no copo de minha mágoa
Dou-lhe o meu canto louco; faço
um pouco mais do que ser louco.
E ela me exige bis, “ao palco”!
A rua
Bem sei que, muitas vezes,
O único remédio
É adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,
A dívida, o divertimento,
O pedido de emprego, ou a própria alegria.
A esperança é também uma forma
De continuo adiamento.
Sei que é preciso prestigiar a esperança,
Numa sala de espera.
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas,
Esperança sentada.
Não abdicação diante da vida.
A esperança
Nunca é a forma burguesa, sentada e tranqüila da espera.
Nunca é figura de mulher
Do quadro antigo.
Sentada, dando milho aos pombos.
Martim Cererê de Cassiano Ricardo
Publicado em 1928 ( ano do Manisfesto Antropófago de Macunaína e do radicalismo primitivista), representa o ponto alto da vertente nacionalista e ufanista do verdeamarealismo. Constituído de poemas de ritmo e forma vária, como um “livro de figuras”, aproxima-se da técnica do desenho animado ou da estória em quadrinhos. O caráter épico e narrativo de Martim Cererê tem sido alvo de inúmeros trabalhos que procuram dimensionar a participação desses elementos, de qualquer modo, identificáveis no lendário, na visão estética do mito, na universalidade do sentimento que vai buscar o elemento estrangeiro para salientar o elemento nacional, especialmente nas aproximações com o Ulisses grego: “Certo dia, chegou um marinheiro e ouviu o canto da Uiara, Não se faz amarrar ao castro do navio, nem mandou tapar os ouvidos dos demais marinheiros. Saltou logo em terra e ofereceu-se para casar com ela”.
O enredo desenvolve a lenda do surgimento da noite e do desenvolvimento do Brasil. O índio Aimberê e o marinheiro branco Martim apaixonam- se pela Uiara, que se propõe a se casar com aquele que lhe trouxesse a noite. Martim vai a África e traz a noite que são os negros escravos. Da união, surgem os bandeirantes, que desbravam os sertões, plantam o mar verde dos cafezais e constroem as fábricas e arranha-céus da metrópole paulistana. O poema tematiza formação do Brasil, resultante da oposição entre o mundo primitivo, da fantasia, dos mitos (ontem”) e “a vida rodando fremindo batendo martelo (hoje).
Dentro da proposta do Verdeamarelismo e do grupo da Anta, para se chegar ao progresso foi necessário “engolir” as matas, o índio, o café e tudo o que ousasse interromper a marcha do progresso. ” Os tupis desceram para ser absorvidos. Para se diluírem no sangue da gente nova” ( Manisfesto da Anta) Observe que o Totem dos tupis , a anta não é carnívora. Observe também a oposição entre as propostas da corrente nacionalista e da primitivista ( antropofagia).
GUILHERME DE ALMEIDA
Esta vida
Um sábio me dizia: esta existência,
não vale a angústia de viver. A ciência,
se fôssemos eternos, num transporte
de desespero inventaria a morte.
Uma célula orgânica aparece
no infinito do tempo. E vibra e cresce
e se desdobra e estala num segundo.
Homem, eis o que somos neste mundo.
Assim falou-me o sábio e eu comecei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.
Um monge me dizia: ó mocidade,
és relâmpago ao pé da eternidade!
Pensa: o tempo anda sempre e não repousa;
esta vida não vale grande coisa.
Uma mulher que chora, um berço a um canto;
o riso, às vezes, quase sempre, um pranto.
Depois o mundo, a luta que intimida,
quadro círios acesos : eis a vida
Isto me disse o monge e eu continuei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.
Um pobre me dizia: para o pobre
a vida, é o pão e o andrajo vil que o cobre.
Deus, eu não creio nesta fantasia.
Deus me deu fome e sede a cada dia
mas nunca me deu pão, nem me deu água.
Deu-me a vergonha, a infâmia, a mágoa
de andar de porta em porta, esfarrapado.
Deu-me esta vida: um pão envenenado.
Assim falou-me o pobre e eu continuei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.
Uma mulher me disse: vem comigo!
Fecha os olhos e sonha, meu amigo.
Sonha um lar, uma doce companheira
que queiras muito e que também te queira.
No telhado, um penacho de fumaça.
Cortinas muito brancas na vidraça
Um canário que canta na gaiola.
Que linda a vida lá por dentro rola!
Pela primeira vez eu comecei a ver,
dentro da própria vida, o encanto de viver.
Nós I
Fico – deixas-me velho. Moça e bela,
partes. Estes gerânios encarnados,
que na janela vivem debruçados,
vão morrer debruçados na janela.
E o piano, o teu canário tagarela,
a lâmpada, o divã, os cortinados:
– “Que é feito dela?” – indagarão – coitados!
E os amigos dirão: – “Que é feito dela?”
Parte! E se, olhando atrás, da extrema curva
da estrada, vires, esbatida e turva,
tremer a alvura dos cabelos meus;
irás pensando, pelo teu caminho,
que essa pobre cabeça de velhinho
é um lenço branco que te diz adeus!
Nós III
Mas não passou sem nuvem de tristeza
esse amor que era toda a tua vida,
em que eu tinha a existência resumida
e a viva chama de minha alma, acesa.
Nem lemos sem vislumbre de incerteza
a página do amor, lida e relida,
mas pouquíssimas vezes entendida,
sempre cheia de engano e de surpresa,
Não. Quantas vezes ocultei a minha
dor num sorriso! Quanta vez sentiste
parar, medroso, o coração de gelo!
– É que nossa alma às vezes adivinha
que perder um amor não é tão triste
como pensar que havemos de perdê-lo.
Indiferença
Hoje, voltas-me o rosto, se ao teu lado
passo. E eu, baixo os meus olhos se te avisto.
E assim fazemos, como se com isto,
pudéssemos varrer nosso passado.
Passo esquecido de te olhar, coitado!
Vais, coitada, esquecida de que existo.
Como se nunca me tivesses visto,
como se eu sempre não te houvesse amado
Mas, se às vezes, sem querer nos entrevemos,
se quando passo, teu olhar me alcança
se meus olhos te alcançam quando vais.
Ah! Só Deus sabe! Só nós dois sabemos.
Volta-nos sempre a pálida lembrança.
Daqueles tempos que não voltam mais!
Haicai
Infância
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se “Agora”.
Cigarra
Diamante. Vidraça.
Arisca, áspera asa risca
o ar. E brilha. E passa.
RONALD DE CARVALHO
Écloga tropical
Entre a chuva de ouro das carambolas
e o veludo polido das jabuticabas,
sobre o gramado morno,
onde voam borboletas e besouros,
sobre o gramado lustroso
onde pulam gafanhotos de asas verdes e vermelhas,
Salta uma ronda de crianças!
O ar é todo perfume,
perfume tépido de ervas, raízes e folhagens.
O ar cheira a mel de abelhas…
E há nos olhos castanhos das crianças
a doçura e o travor das resinas selvagens,
e há nas suas vozes agudas e dissonantes
um áureo rumor de flautas, de trilos, de zumbidos
e de águas buliçosas…
JUÓ BANANERE
As Pombigna
P’ru aviadore chi pigó o tombo
Vai a primeira pombigna dispertada,
I maise otra vai disposa da primiera;
I otra maise, i maise otra, i assi dista maniera,
Vai s’imbora tutta pombarada.
Passano fora o dí i a tardi intera,
Catano as formiguigna ingoppa a strada;
Ma quano vê a notte indisgraziada,
Vorta tuttos in bandos, in filera.
Assi tambê o Cicero avua,
Sobi nu spaço, molto alê da lua,
Fica piqueno uguali d’un sabiá.
Ma tuttos dia avua, allegre, os pombo!…
Inveis chi o Muque, desdi aquilio tombo,
Nunga maise quiz avuá.
Migna terra tê parmeras,
Che ganta inzima o sabiá.
As aves che stó aqui,
Tambê tuttos sabi gorgeá.
A abobora celestia tambê,
Che tê lá na mia terra,
Tê moltos millió di strella
Che non tê na Ingraterra.
Os rios lá sô maise grandi
Dus rios di tuttas naçó;
I os matto si perde di vista,
Nu meio da imensidó.
Na migna terra tê parmeras
Dove ganta a galigna dangola;
Na migna terra tê o Vap’relli,
Chi só anda di gartolla.
MANIFESTO PAU-BRASIL
- A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
- O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
- Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.
- O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.
- A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.
- Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.
- A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, critica, donas de casa tratando de cozinha.
- A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.
- Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo : o teatro de tese e a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus Juris.
- Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Agil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a poesia.
- A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.
- Uma sugestão de Blaise Cendrars : – Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.
- Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias.
- A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.
- Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros.
- Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.
- Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadros de carneiros que não fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho… Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado – o artista fotógrafo.
- Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela. Stravinski.
- A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas.
- Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano.
- Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram desmanchando. Duas fases: 10) a deformação através do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e Malarmé, Rodin e Debussy até agora. 20) o lirismo, a apresentação no templo, os materiais, a inocência construtiva.
- O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil.
- Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento dinâmico dos fatores destrutivos.
- A síntese
- O equilíbrio
- O acabamento de carrosserie
- A invenção
- A surpresa
- Uma nova perspectiva
- Uma nova escala.
- Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil
- O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.
- Uma nova perspectiva.
- A outra, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de apogeu. Era uma ilusão ética. Os objetos distantes não diminuíam. Era uma lei de aparência. Ora, o momento é de reação à aparência. Reação à cópia. Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua.
- Uma nova escala:
- A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos livros, crianças nos colos. O redame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O correspondente da surpresa física em arte.
- A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de tese era um arranjo monstruoso. O romance de idéias, uma mistura. O quadro histórico, uma aberração. A escultura eloquente, um pavor sem sentido.
- Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.
- Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.
- A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente.
- Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.
- Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a algebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de “dorme nenê que o bicho vem pegá” e de equações.
- Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas; nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil.
- Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar. A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar. Pau-Brasil.
- O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.
- Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.
- O estado de inocência substituindo o estada de graça que pode ser uma atitude do espírito.
- O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.
- A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.
- Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.
- Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.
(MANIFESTO DO VERDE-AMARELISMO,OU DA ESCOLA DA ANTA)
- A descida dos tupis do planalto continental no rumo do Atlântico foi uma fatalidade histórica pré-cabralina, que preparou .o ambiente para as entradas no sertão pelos aventureiros brancos desbravadores do oceano.
- A expulsão, feita pelo povo tapir, dos tapuias do litoral, significa bem, na história da América, a proclamação de direito das raças e a negação de todos os preconceitos.
- Embora viessem os guerreiros do Oeste, dizendo “ya so Pindorama koti, itamarana po anhatim, yara rama recé”, na realidade não desceram com a sua Anta a fim de absorver a gente branca e se fixarem objetivamente na terra. Onde estão os rastros dos velhos conquistadores?
- Os tupis desceram para serem absorvidos. Para se diluírem no sangue da gente nova. Para viver subjetivamente e transformar numa prodigiosa força a bondade do brasileiro e o seu grande sentimento de humanidade.
- Seu totem não é carnívoro: Anta. E’ este um animal que abre caminhos, e aí parece estar indicada a predestinação da gente tupi.
- Toda a história desta raça corresponde (desde o reinol Martim Afonso, ao nacionalista `verdamarelo’, José Bonifácio) a um lento desaparecer de formas objetivas e a um crescente aparecimento de forças subjetivas nacionais. .O tupi significa a ausência de preconceitos. O tapuia é o próprio preconceito em fuga para o sertão. O jesuíta pensou que havia conquistado o tupi, e o tupi é que havia conquistado para si a religião do jesuíta. O português julgou que o tupi deixaria de existir; e o português transformou-se, e ergueu-se com fisionomia de nação nova contra metrópole: porque o tupi venceu dentro da alma e do sangue do português.
- O tapuia isolou-se na selva, para viver; e foi morto pelos arcabuzes e pelas flechas inimigas. O tupi socializou-se sem temor da morte; e ficou eternizado no sangue da nossa raça. O tapuia é morto, o tupi é vivo.
- O mameluco voltou-se contra o índio, para destruir a expressão formal, a exterioridade aborígine; porque o que há de interior no bugre subsistirá sempre na alma do mameluco e se perpetuará nos novos tipos de cruzamento. E a fisionomia própria da gente brasileira, não fichada em definições filosóficas ou políticas, mas revelada nas tendências gerais comuns.
- Todas as formas do jacobinismo na América são tapuias. O nacionalismo sadio, de grande finalidade histórica, de predestinação humana, esse é forçosamente tupi.
- Jacobinismo quer dizer isolamento, portanto desagregação.
- O nacionalismo tupi não é intelectual. E sentimental. E de ação prática, sem desvios da corrente histórica. Pode aceitar as formas de civilização, mas impõe a essência do sentimento, a fisionomia irradiadora da sua alma. Sente Tupã, Taniandaré ou Aricuta através mesmo do catolicismo. Tem horror instintivo pelas lutas religiosas, diante das quais sorri sinceramente: pra quê?
- Deram-lhe uma casaca da Câmara dos Comuns, durante mais de meio século, e a República encontrou-o igualzinho ao que ele já era no tempo de D. João, ou no tempo de Tiradentes.
- Não combate nem religiões, nem filosofias, porque toda a sua força reside na sua capacidade sentimental.
- A Nação é uma resultante de agentes históricos. O índio, o negro, o espadachim, o jesuíta, o tropeiro, o poeta, o fazendeiro, o político, o holandês, o português, o índio, o francês, os rios, as montanhas, a mineração, a pecuária, a agricultura, o sol, as léguas imensas, o Cruzeiro do Sul, o café, a literatura francesa, as políticas inglesa e americana, os oito milhões de quilômetros quadrados…
- Temos de aceitar todos esses fatores, ou destruir a Nacionalidade, pelo estabelecimento de distinções, pelo desmembramento nuclear da idéia que dela formamos.
- Como aceitar todos esses fatores? Não concedendo predominância a nenhum.
- A filosofia tupi tem de ser forçosamente a `não filosofia’. O movimento da Anta baseava-se nesse princípio. Tomava-se o índio como símbolo nacional, justamente porque ele significa a ausência de preconceito. Entre todas as raças que formaram o Brasil, a autóctone foi a única que desapareceu objetivamente. Em uma população de 34 milhões não contamos meio milhão de selvagens. Entretanto, é a única das raças que exerce subjetivamente sobre todas as outras a ação destruidora de traços caracterizantes; é a única que evita o florescimento de nacionalismos exóticos; é a raça transformadora das raças, e isso porque não declara guerra, porque não oferece a nenhuma das outras o elemento vitalizante da resistência.
- Essa expressão de nacionalismo tupi, que foi descoberta com o movimento da Anta (do qual resultou um sectarismo exagerado e perigoso), é evidente em todos os lances da vida social e política brasileira.
- Não há entre nós preconceitos de raças. Quando foi o 13 de Maio, havia negros ocupando já altas posições no país. E antes, como depois disso, os filhos de estrangeiros de todas as procedências nunca viram os seus passos tolhidos.
- Não há também no Brasil o preconceito político: o que nos importa é a administração, no que andamos acertadíssimos, pois só assim consultamos as realidades nacionais. Os teoristas da República foram os que menos influíram na organização prática do novo regime. No Império, o sistema parlamentar só se efetivou pela interferência do Poder Moderador. Dentro da República os que mais realizam são os que menos doutrinam. Ainda agora, nas plataformas dos nossos candidatos, não procuramos os traços de uma ideologia política, porém o que nos interessa é apenas a diretriz da administração.
- País sem preconceitos, podemos destruir as nossas bibliotecas, sem a menor conseqüência no metabolismo funcional dos órgãos vitais da Nação. Tudo isso, em razão do nacionalismo tupi, da não-filosofia, da ausência de sistematizações.
- Somos um país de imigração e continuaremos a ser refúgio da humanidade por motivos geográficos e econômicos demasiadamente sabidos. Segundo os de Reclus, cabem no Brasil 300 milhões de habitantes. Na opinião bem fundamentada do sociólogo mexicano Vasconcelos, é de entre as bacias do Amazonas e do Prata que sairá a ‘quinta raça’, a `raça cósmica’, que realizará a concórdia universal, porque será filha das dores e das esperanças de toda a humanidade. Temos de construir essa grande nação, integrando na Pátria Comum todas as nossas expressões históricas, étnicas, sociais, religiosas e políticas. Pela força centrípeta do elemento tupi.
- Mas, se o tupi se erigir em filosofia, criará antagonismos, provocará dissociação, será uma força centrifuga. E o Brasil falhará, pois precipitará acontecimentos.
- Toda e qualquer sistematização filosófica entre nós será tapuia (destinada a desaparecer assediada por outras tantas doutrinas) porque viverá a vida efêmera das formas ideológicas de antecipação, das fórmulas arbitrárias da inteligência, tendo necessidade de criar uma exegese específica, unilateral e sem a amplitude dos largos e desafogados pensamentos e sentimentos americanos e brasileiros.
- Foi o índio que nos ensinou a rir de todos os sistemas e de todas as teorias. Criar um sistema em nome dele será substituir a nossa intuição americana e a nossa consciência de homens livres por uma mentalidade de análise e de generalização características dos povos já definidos e cristalizados.
- A continuação do caminho histórico tupi só se dará pela ausência de imposições temáticas, de imperativos ideológicos. O arbítrio mental não pode sobrepor-se às fatalidades cósmicas, étnicas, sociais ou religiosas.
- O estudo do Brasil já não será o estudo do índio. Do mesmo modo que o estudo da humanidade, que produziu o budismo, o cristianismo, a Grécia, a Idade Média, o romantismo e a eletricidade, não será apenas a pesquisa freudiana do homem da pedra lascada. Se Freud nos dá um algarismo, a história da Civilização nos ofereceu uma equação em que esse algarismo entra tão-só como um dos muitíssimos fatores.
- Assim, também o índio é um termo constante na progressão étnica e social brasileira; mas um termo não é tudo. Ele já foi dominado, quando se agitou entre nós a bandeira nacionalista, – o denominador .comum das raças adventícias. Colocá-lo como numerador seria diminuí-lo. Sobrepô-lo será fadá-lo ao desaparecimento. Porque ele ainda vive, subjetivamente, e viverá sempre como um elemento de harmonia entre todos os que, antes de desembarcar em Santos, atiraram ao mar, como o cadáver de Zaratustra, os preconceitos e filosofias de origem.
- Estávamos e estamos fartos da Europa ,e proclamamos sem cessar a liberdade de ação brasileira.
- Há uma retórica feita de palavras, como há uma retórica feita de idéias. No fundo, são
ambas feitas de artifícios e esterilidades. Combatemos, desde 1921, a velha retórica verbal, não aceitamos uma nova retórica submetida a três ou quatro regras, de pensar e de sentir. Queremos ser o que somos: brasileiros. Barbaramente, com arestas, sem auto-experiências científicas, sem psicanálises e nem teoremas.
- Convidamos a nossa geração a produzir sem discutir. Bem ou mal, mas produzir. Há sete anos que a literatura brasileira está em discussão. Procuremos escrever sem espírito preconcebido, não por mera experiência de estilos, ou para veicular teorias, sejam elas quais forem, mas com o único intuito de nos revelarmos, livres de todos os prejuízos.
- A vida, eis o que nos interessa, eis o que interessa à grande massa do povo brasileiro. Em sete anos a geração nova tem sido o público de si mesmo. O grosso da população ignora a sua existência e se ouve falar em movimento moderno é pelo prestígio de meia dúzia de nomes que se impuseram pela força pessoal de seus próprios talentos.
- O grupo `verdamarelo’, cuja regra é a liberdade plena de cada um ser brasileiro como quiser e puder; cuja condição é cada um interpretar o seu país e o seu povo através de si mesmo, da própria determinação instintiva; – o grupo `verdamarelo’, à tirania das sistematizações ideológicas, responde com a sua alforria e a amplitude sem obstáculo de sua ação brasileira. Nosso nacionalismo é de afirmação, de colaboração coletiva, de igualdade dos povos e das raças, de liberdade do pensamento, de crença na predestinação do Brasil na humanidade, de fé em nosso valor de construção nacional.
- Aceitamos todas as instituições conservadoras, pois é dentro delas mesmo que faremos a inevitável renovação do Brasil, como o fez, através de quatro séculos, a alma da nossa gente, através de todas as expressões históricas.
- Nosso nacionalismo é ‘verdamarelo’ e tupi.
- O objetivismo das instituições e o subjetivismo da gente sob a atuação dos fatores geográfico e histórico.
(Correio Paulistano, 17 de maio de 1929.)
MANIFESTO ANTROPÓFAGO
- Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
- Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
- Tupi, or not tupi that is the question.
- Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
- Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
- Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.
- O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.
- Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande.
- Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.
- Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
- Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar.
- Queremos a Revolução Caraiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem n6s a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.
- A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.
- Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaig-ne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos..
- Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.
- Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.
- Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe : ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.
- O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.
- Só podemos atender ao mundo orecular.
- Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem.
- Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores.
- Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
- O instinto Caraíba.
- Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia.
- Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.
- Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.
- Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.
- Catiti Catiti
- Imara Notiá
- Notiá Imara
- Ipeju
- A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.
- Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comia.
- Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso?
- Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César.
- A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue.
- Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.
- Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida.
- Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.
- Se Deus é a consciênda do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.
- Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário.
- As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo.
- De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia.
- O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas+ fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa.
- É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci.
- O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso?
- Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
- Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.
- A alegria é a prova dos nove.
- No matriarcado de Pindorama.
- Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.
- Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimarnos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas.
- Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.
- A alegria é a prova dos nove.
- A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.
- Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo.
- A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.
- Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.
OSWALD DE ANDRADE Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.” (Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)